quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Raça e racismo: controvérsias e ambiguidades

Maria Manuela Mendes, "Raça e racismo: controvérsias e ambiguidades"

Maria Manuela Mendes
Socióloga, doutora em Ciências Sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa,
Professora Auxiliar na Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa,
investigadora no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa.

Nota de abertura
Nesta análise a nossa preocupação direciona-se para a exploração analítica
da literatura sociológica que nos permite enquadrar os fenômenos do racismo e da
discriminação, mas também se fazem algumas incursões, ainda que breves, em outras
disciplinas no âmbito das ciências sociais, como a psicologia social e a antropologia.
Nesta discussão confere-se um lugar de destaque ao conceito de raça, efetuando-se
uma espécie de genealogia do termo, indispensável para a compreensão e a
clarificação do conceito de racismo, dotado de uma elevada fluidez e envolto em
controvérsia, mas que ocupa um lugar central em muitas pesquisas no campo da
sociologia, da antropologia e da psicologia. Assim, na primeira parte, efetuam-se o
enquadramento teórico e o percurso histórico do conceito de raça; e na segunda, faz-se
a transição para o debate em torno do conceito de racismo (e de discriminação),
conceito de per si movediço, complexo, de aparência poliédrica.

Artigo completo aqui.

Appiah e a ideia de raça

Appiah, Kwame Anthony, Na casa de meu pai, Rio, Contraponto, 1997



No primeiro capítulo de seu livro, Kwame Anthony Appiah analisa primordialmente a questão da invenção do pan-africanismo e do pan-negrismo como idealizadores de um pensamento geral para a África baseados nos conceitos de raça.
   
Os principais idealizadores do pan-africanismo eram afro-americanos, ou seja, negros dos EUA que com sua bagagem cultural e social passaram a pensar em um movimento único para os negros. Estes, tinham muito receio dos brancos como reflexo dos movimentos segregacionistas do Sul dos EUA, e com isso reafirmavam ainda mais sua ideologia em torno do conceito de raça.

Segundo Crummell, toda a raça negra estaria unida dentro de um destino comum. Os negros estariam então se unindo em torno de seu lar racial. A questão de raça estava sempre presente nas discussões, e as diferentes visões acerca deste tema serão analisados mais para a frente neste capítulo assim como no seguinte.

     Os pensadores afro-americanos, encabeçados por Crummell, tinham um pensamento viciado nas idéias ocidentais, por isso afirmavam que a África precisaria ser domada do paganismo e do barbarismo para depois ser unida em torno da raça negra. Um dos pontos principais deste plano seria a união em torno de um idioma ocidental, visto que havia inúmeros idiomas autóctones e também o idioma inglês seria “propício para os ensinamentos do cristianismo (protestantismo)”. Assim, a língua do colonizador acabou sendo a centralizadora das diferentes etnias “bárbaras e pagãs”. Este ensinamento foi tentado por várias décadas pelas escolas coloniais, que falharam na sua pretensão - principalmente nas colônias francesas - de alienar os africanos de suas tradições e raízes culturais.

     Para Appiah, o conceito de “raça” sempre foi um princípio organizador geral de qualquer pensamento em torno de um pan-africanismo. Segundo ele, tal conceito variou muito com o tempo e com as diferentes ideologias. Durante a Grécia Clássica, por exemplo, os fatores biológicos estavam aliados aos fatores culturais quando se pensava nas diferentes raças.

     Segundo o autor, há diferenças entre racialismo, racismo extrínseco e racismo intrínseco. O racialismo seria baseado em “características hereditárias, possuídas por membros de nossa espécie, que nos permitem dividi-los num pequeno conjunto de raças, de tal modo que todos os membros dessas raças compartilham entre si certos traços e tendências que eles não têm em comum com membros de nenhuma outra raça”.

     Já o racismo extrínseco seria fundamentado em “distinções morais entre os membros das diferentes raças”. Tais racistas acreditam “que a essência racial implica certas qualidades moralmente relevantes”. Quaquer prova de que tais diferenças não existam deveriam impedir o racismo extrínseco, se este fosse puramente extrínseco. Porém,  nenhum racismo é unicamente extrínseco. Uma forma deste racismo seria a opressão.

Neste ponto entra a questão do racismo intrínseco, onde as “pessoas que estabelecem diferenças morais entre os membros das diferentes raças” acreditam “que cada raça tem um status moral diferente, independentemente das características partilhadas por seus membros”. Podemos pensar como exemplos deste tipo de racismo as solidariedades racial e nacional.

     Ambos os racismos são ideológicos, mas há algumas diferenças entre eles. O “intrínseco declara que certo grupo é objetável, sejam quais forem seus traços”. Já o “extrínseco fundamenta suas aversões em alegações sobre características objetáveis”. Para Appiah, ambos os racismo deveriam ser esquecidos. O racismo intrínseco pode ser considerado como um erro moral enquanto o racismo extrínseco é baseado em falsas crenças.

     Continuando sua contextualização histórica acerca do pan-africanismo, o autor afirma que após a Segunda Guerra Mundial, onde diversos negros lutaram dentro dos Exércitos metropolitanos, o movimento partiu para novas tendências. O novo pensamento passou a ser baseado no aproveitamento também das tradições africanas em conjunto com o avanço tecnológico ocidental.

     Concluindo o capítulo, Kwame Anthony Appiah pensa que tais fundamentações para o pan-africanismo tem bases errôneas por se basearem no racismo (intrínseco) e por suporem que os africanos tem um passado comum. Este seria menor do que se supõe, visto que os passados pré-colonialismo são tão diferentes quanto as experiências coloniais.


Capítulo 2 - Ilusões de raça

A fundamentação teórica de Appiah em seu segundo capítulo está baseada no pensamento do autor W. E. B. Du Bois, aquele que segundo o autor foi quem fez a fundamentação teórica, intelectual e prática do pan-africanismo. Seguindo esta linha de pensamento, o problema do negro estaria fundamentado na busca por uma expressão para a sua raça, com uma nova e positiva mensagem à humanidade.

     Na maior parte do capítulo, a discussão está centralizada na definição de raça. Como se daria esta definição? Appiah busca esta explicação em diversas áreas, tais como a localização territorial, as origens dos idiomas, a biologia, a ancestralidade, a identificação grupal e a concepção científica.

É nesta última que ele mais se aprofunda, discutindo as bases científicas que poderiam ser utilizadas pelos racistas como base teórica para os seus preconceitos. Porém, ele finaliza a discussão mostrando como mesmo dentro desta área a questão da raça é errônea, pois entre e mesmo dentro daquelas chamadas “raças”, há muita pouca variabilidade gênica se formos pensar no conjunto. Isto acontece porque, segundo esta teoria, as “raças” não estão fechadas devido aos grandes movimentos migratórios presentes em todos os movimentos históricos.

Por isso mesmo, o pensamento do racismo extrínseco foi refutado já que a fundamentação vai toda abaixo depois que a ciência provou que todas aquelas chamadas “raças” são iguais, não há porque se afirmar que características biológicas determinam que uma “raça” é menos ou mais apta ao trabalho, por exemplo. Seguindo este pensamento, Appiah compara os preconceitos sofridos pelos negros aos sofridos pelos judeus.

Sendo a base cultural e ideológica dos mentores do pensamento pan-africanismo a cultura e a ideologia norte-americana presente tanto em Crummell quanto em Du Bois, estes não percebem que a origem comum africana se resume somente à sua origem “racial”, ou como afirmou Appiah, "que importa que uma grande parcela de seus ancestrais tenha vivido nesse vasto continente, se não há nenhum laço mais sutil com eles, a não ser a ascendência biológica bruta - ou seja, sem mediação cultural - e a 'insígnia' que ela implica, dos cabelos e da cor?". Finalizando, o racismo de Du Bois seria intrínseco e não e extrínseco devido às origens.


Capítulo 3 - Pendendo para o Nativismo

    A questão principal abordada por Appiah neste capítulo é o nacionalismo e a relação entre nação, literatura e raça.

    É certo que hoje, com os avanços da biologia, não pode mais pensar em diferenças raciais como pensavam os colonizadores de outrora, mesmo assim, existe a noção, européia em primeira instância, de que as raças estão vinculadas às nações. Digo noção européia, porque mesmo nos imperialistas E.U.A., não se pode ter a idéia de uma raça americana, uma vez que os E.U.A., como toda a América, foram formados pela miscigenação de “raças” diferentes, como os europeus (e suas várias “raças”), os africanos negros e os próprios nativos de pele vermelha.

    O capítulo praticamente se inicia com um lema de exaltação à raça saxônica, em especial aos saxões ingleses. Isso porque, na Inglaterra, a exaltação à raça saxônica dá bases à luta do indivíduo contra o domínio da coroa, pois remonta ao período que vai desde 410 até 1066, ou seja, desde quando, com a saída dos romanos, os saxões dominaram a Inglaterra (então chamada Bretanha, por ser a terra dos bretãos) até quando os normandos chefiados por Guilherme, o Conquistador a dominaram. Os ideólogos de tal exaltação dizem que antes da conquista normanda a Inglaterra (ou terra dos anglos, de anglo-saxões) vivia na igualdade e os direitos individuais eram respeitados, o que teria acabado com a conquista normanda. Sendo assim, depois da Restauração de 1660, a teoria da raça-nação surgiu como uma demonstração de força dos indivíduos contra a coroa.

    Num país claramente mestiço (se é que esta expressão é correta, o que não cabe aqui discutir) como os E.U.A., mas de colonização inglesa e, sendo assim, anglo-saxônica, também havia aqueles que defendiam idéias semelhantes, como Thomas Jefferson, que apesar de levar em consideração os valores dos nativos americanos (inclusive incentivando a mistura racial entre eles e os brancos com o intuito de criar uma raça americana forte), que suspeitava que a raça braça saxônica fosse muito superior à raça negra, ou seja, aos povos de origem africana.

    É interessante observar que o nacionalismo europeu do século XIX deu origem a países como Itália e Alemanha, além de lançar as bases para num futuro não tão distante, existirem movimentos de ultradireita racista, como o Fascismo e o Nazismo. Já nas regiões dominadas pelo imperialismo europeu, como a África e territórios da Ásia, a idéia de nacionalismo veio de fora e foi incutida nos habitantes pelos próprios dominadores. Entretanto, tal idéia não foi de todo ruim para os dominados, pois serem nacionalistas garantia a eles uma maneira eficaz de se protegerem da dominação material, ou seja, do país em si, pelos estrangeiros.

    A importância do ensino colonial no processo de dominação foi enorme, pois além de impor aos dominados a cultura do dominador, ele também destruía a cultura dominada. Como forma de se proteger de tal dominação, os autores africanos fizeram com que a literatura africana se negasse a ser universal, sendo nacionalista, pois universal era o mesmo que dominada.

    Por fim o autor diz que a divisão da África em regiões por troncos de língua semelhante, perpetrada por ingleses e belgas, não respeitava as diferenças tribais, pois para os europeus língua é raça e raça é nação.


Capítulo 4 - O mito de um mundo africano

    Neste capítulo, Appiah discute principalmente a idéia de uma identidade africana, ele diz que apesar de ela estar em formação, já se pode ver traços de sua existência. Um exemplo utilizado pelo autor para ilustrar a idéia de uma identidade africana é o de que se um negro estiver em Londres e alguém lhe perguntar, mesmo que pejorativamente, se ele é africano, esse alguém terá relacionado o fato de o indivíduo ser negro com a possibilidade de ele ser da África, sendo assim, isto é uma forma de identidade africana.

    Entretanto, é muito triste que um continente tenha que ter com sua identidade o racismo e a discriminação, porém essa identidade a África já conseguiu, resta a ela conseguir outras melhores, o que é papel dos autores africanos forjar. A grande diferença entre os escritores euro-americanos e os africanos é que os primeiros têm-se preocupado com a busca do eu, enquanto que os últimos estão engajados na busca, ou construção, de uma cultura.

    Appiah contrapõe dois outros autores africanos (Soyinka e Achebe), para dizer que o primeiro não concorda com a tese do segundo de que o próprio fato de a África ter uma identidade, bem como a identidade africana, é produto de um olhar europeu.

    No final do capítulo o autor nos diz que o principal desafio dos escritores africanos na construção de uma cultura mais elitista é a substituição do “nós” da cultura oral pelo “eu” de seus livros.


Capítulo 5 - A etnofilosofia e seus críticos

    A proposta do autor neste capítulo é discutir o que é de fato a filosofia africana, ou mesmo se ela existe, pois como ele mesmo diz, não é porque algo não é filosófico que este algo não é bom, um livro de culinária pode ser muito bom sem nem por isso fazer parte da filosofia da culinária, o que ele chama de um nome muito pomposo para uma coisa tão simples. Appiah, no entanto, diz que não vai discutir a questão à qual se propõe por meio da definição, pois acha o método muito pouco produtivo.

    Naturalmente, pelo simples fato de o capítulo tratar de uma verdadeira metalinguagem, existem grandes digressões nas quais o autor divaga acerca de seu tema, em alguns momentos ele afirma que toda cultura tem uma filosofia, mas essa filosofia precisa ser trabalhada por um filósofo para se tornar acadêmica, sendo assim, sempre há trabalho para um filósofo. O autor diz que os filósofos africanos são influenciados pela escola e, conseqüentemente, pelas teorias européias. Há filósofos africanos cuja ligação com a África não é maior do que o fato de o continente ser sua terra natal, o que tem certo sentido se pensarmos que a África geograficamente é um continente, no entanto, existem questões que transcendem a geografia africana e que devem ser discutidas dentro da filosofia do continente.

    A criação de uma filosofia negra em contraposição à filosofia européia, ou seja, branca, como ressalta o autor, não é muito interessante, pois tal filosofia se basearia em pressupostos de sua antitética filosofia: a filosofia branca.

    Dentro de tais discussões, o autor roda dentro do capítulo, sendo que no final diz que voltará a falar sobre o assunto nos capítulos finais do livro.


Capítulo 6 – Velhos Deuses, Novos Mundos.

Kwane Anthony Appiah nos começa falando sobre modernidade, mas ao mesmo tempo fala que para pensar em modernidade é necessário que se pense em sua palavra antagônica, que seria "tradicional", e para isso ele irá pegar a suposta cultura tradicional africana, pegando um exemplo de uma tribo Achanti, mas especificamente de um ritual dos Achanti, no qual um indivíduo da tribo convoca(ou pede um favor) a um espírito oferecendo a ele ouro em pó e outras coisas, depois se faz sacrifícios de animais. Após a descrição do ato o autor colocará várias questões a serem estudadas e analisadas sobre este caso e também sobre a África em geral, perguntando coisas como "Por que aquele ritual estava sendo feito" sendo que a resposta era porque os ancestrais assim o faziam, como "para que o ouro em pó" respondendo que é uma questão de respeito ao espírito, como se estivesse dando algo valioso em troca de um favor, ou seja, o ouro é um símbolo de respeito ao espírito, "trata-se o espírito como se trataria um ser humano a quem se respeitasse" (p. 160).

A partir daí Appiah começa a nos mostrar a questão do simbolismo, dizendo que este é característico das cerimonias de todas as culturas, dizendo que "o ritual implica o simbolismo" (p. 163). Depois, o autor ira discutir a questão das crenças, sendo elas falsas ou não, e fala que as crenças são aprendidas pelos homens quando estes crescem, de onde quer que este homem seja. A partir dessa questão das crenças o autor nos mostra que as culturas tradicionais, como o exemplo dos Achanti não são irracionais pois nelas é possível que se faça uma defesa razoável de suas crenças, sendo elas verdadeiras ou não, pois, de certa forma, os espíritos "interferem" na vida dessas pessoas, causando melhoras de saúde por exemplo.

Depois, o autor coloca teorias diversas, como de Horton que nos diz que as religiões tradicionais são como as teorias nas ciências naturais, ao qual Appiah contesta, pois "a organização social da investigação(...) é totalmente diferente nas culturas tradicionais e modernas" (p. 174). Após isso, o autor discutirá ciência e sociedades tradicionais, crenças, etc, a partir de várias teorias.

O autor irá nos mostrar que a grande diferença da cultura tradicional da África e a cultura do mundo industrializado é que a cultura tradicional é predominantemente iletrada, fazendo com que não seja possível comparar as teorias dos ancestrais, diferente do que acontece na cultura ocidental, e "a transmissão oral dificulta o reconhecimento de discrepâncias" (p. 185). Na transmissão oral, tudo o que é transmitido é de memória e é necessário partilhar com aquele que fal um conhecimento dos pressupostos que lhe servem de base. Para Appiah é necessário que haja uma alfabetização, pois esta foi crucial para o desenvolvimento da modernidade.

No final do capítulo o autor nos diz que é necessário que os africanos se compreendam uns aos outros, e que se compreendam como racionais, e que para resolverem os seus problemas é necessário que os encarem como problemas humanos, e não como problemas africanos.


Capítulo 7 – O pós colonial e o pós moderno

Appiah nos começa falando sobre uma exposição de arte africana onde foram convidadas dez pessoas para selecionar as obras, e entre elas estava um homem da tribo balue, e para este só lhe foram dadas obras balues pois ele iria rejeitar as outras obras de outras tribos africanas, pois iria julgar com os seus conceitos. O autor contesta, primeiramente provando que um balue conhece outras culturas africanas e que aqueles não africanos também julgaram as imagens com os seus próprios conceitos.

O autor começa a tratar da questão da arte africana como mercadoria, fazendo parte de um processo de mercadologização, em que a arte é produzida em um contexto pós-moderno que é voltado para a sociedade de consumo. A partir daí, o autor começa a discutir o pós-modernismo de várias maneiras, como na filosofia, na arquitetura, mas principalmente na arte e na literatura, principalmente a africana. Appiah também ira discutir a racionalização de Webber, e diz que o pós-modernismo rejeita essa razão, mas que faz parte do processo de mercadologização.

Ele nos mostra que uma parte da sociedade africana se tornou uma sociedade consumista com os moldes ocidentais e que fazem parte desse processo de mercadologização, isso na era pós-colonialismo, e essa parte é a burguesia africana, ou seja, a elite que comanda as nações. Para o autor a África está sendo muito influenciada pela cultura ocidental dentro de sua cultura tradicional, principalmente a partir do momento em que a arte vira mercadoria. Appiah também irá nos mostrar vários exemplos de romances literários africanos no pós-colonialismo e como esses rejeitam a idéia anterior, assim como o pós- modernismo. Ele irá finalizar o 7º capítulo nos mostrando que nas culturas africanas existem aqueles que se recusam a ver-se como o Outro, e que as literaturas populares, a poesia, a música, a dança, e outras coisas todas vicejam na África. Para ele as sociedades africanas estão tendo uma modernização mas mantendo os seus aspectos culturais.


Capítulo 8 - Estados Alterados

     O que o autor aqui propõe é a análise da formação dos Estados Africanos contemporâneos  baseado na compreensão do passado pré-colonial, do colonialismo e da transição de poder da metrópole para os recém formados Estados independentes.

     O autor começa em um retroceder pelo tempo, diagnosticando a formação de novas identidades na junção da colonização com os costumes tradicionais de seu povo, a luta pela independência (fato este que não é amplamente abordado) dos Estados Africanos e a conseqüência destes processos. Em sua análise trabalha, com  conceitos de Estado e de sua permanência junto as tradições de vários povos. As tradições são legitimadas pelas sociedades e portanto mais próximas as mesmas, permitem que (no caso específico ele se refere da etnia de seu pai, Achanti) estas sociedades possam exercer algum tipo de autonomia com relação ao Estado, sociedades estas unidas por convicções éticas, laços de afeição e mundos compartilhados de significações. Já o Estado, como herança colonial, é legitimado através da coerção  (citando exemplos como o os impostos e o alistamento obrigatório e o direito criminal que não é optativo) estigmatizado na repressão no aspecto amplo de exploração.

     No caso de Gana, e note-se que o autor usa Gana  para auxiliar na compreensão do que ocorreu em grande parte da África, o Estado que surge após a independência, possui os mesmos vícios e conjunturas do Estado colonial, em suma, perpetuando muitos aspectos do sistema econômico colonial, alem de serem suplantadas e ignoradas as diferenças étnicas, muitas vezes encobertas pelos discursos nacionalistas no que diz respeito a junção dos povos no processo de independência. Quais as consequências da perpetuação de aspectos deste Estado colonial  e a crença em uma igualdade étnica que de certa forma não existia?

     O Estado colonial visava a manutenção do poder, através da coerção e, ainda mais, o “retorno” de capitais investidos na colônia, principalmente sob a forma de impostos. Restringia o acesso a educação por parte dos nativos e tratava-se de um estado de exclusão social não participativo (neste ponto há que se abrir um precedente para as distinções entre as colonizações francesas e inglesas que ele mesmo diferencia) .  Um estado independente que nascia para a gerar condições para o desenvolvimento  e criação de infra estrutura não poderia jamais apoiar-se nas bases de um estado que visava ganhos para a metrópole e a manutenção da ordem vigente. Ao herdarem o aparelho de Estado colonial, os governantes pós-coloniais herdaram as rédeas do poder, poucos repararam, no princípio, que elas não estavam ligadas a um bocal de freio (p. 230).

     Em muitos casos, o que se observa depois da independência, são mecanismos que favorecem determinadas elites dentro do Estado, e a formação destes Estados sob bases frágeis, o que explica os vários golpes de estado sucessivos em muitos países recém independentes, que acabavam por comprometer a formação de estruturas que  viabilizassem o desenvolvimento dos mesmos.

Quanto as etnias, como próprio  Appiah cita: “ Uma vez passado o momento de coesão contra os britânicos, o registro simbólico da união nacional confrontou-se com a realidade de nossas diferenças” (p. 227) e mais, no caso de Gana “o entusiasmo real que um dia existira, ainda que limitado, tinha-se evaporado; as complicações começaram a reter nossas atenções” (p. 225). O que o autor aqui demonstra, é a fragilidade com que se da a formação destas “unidades nacionais” que logo depois da euforia, frente as complicações geradas pela administração do Estado, o que tende a se romper é exatamente o precário elo entre estes povos. Há que se levar em conta ainda que os Estados geográficos europeus na África ignoraram qualquer diferença entre povos, adequando os territórios conforme sua vontade e lógica de exploração;”...Mas na independência a mesma Europa deixou a África com Estados a procura de nações...” (p. 227).

Mas a visão de Appiah que em uma primeira impressão possa parecer pessimista, traz a compreensão de possibilidades que possam proporcionar a alguns Estados africanos o crescimento e a criação de estruturas e mecanismos que possam alavancar o desenvolvimento e principalmente, gerir um estado de participação dos povos na gestão do Estado como um todo. Mas como ?

O autor cita o exemplo das organizações e associações não governamentais que gradualmente passaram a exercer papéis anteriormente de função do Estado, como administração de creches, instituições de ensino e na área de saúde. O funcionamento destas organizações, auxiliado em sua maioria por naturais da região, de certa forma, torna-se um aprendizado no exercício da organização e no que diz respeito a mobilização das pessoas “ eles dão às pessoas a oportunidade de exercer modos participativos de organização da vida comunitária, proporcionam uma experiência de autonomia” (p. 239). Desperta a consciência dos envolvidos para compreensão do que é uma gestão participativa. Isto pode, futuramente (e acredito que pela época em que este livro foi escrito, esta idéia já tenha dado seus frutos) levar a uma reivindicação de participação maciça dos povos na administração dos Estados. Um Estado  menos restrito a participação de sua população, baseado em direitos preteridos pela mesma.

Para Appiah, a democracia não deve ser baseada apenas em questão de parlamentos e eleições, mas no desenvolvimento de  mecanismos  pelos quais os governantes possam ser cerceados pelos governados.

Appiah encerra o capítulo de uma forma que deixe o leitor a imaginar que nada está pronto e que tudo se assemelha a uma fase de transição á qual nem ele mesmo consegue prever o que de certo  irá ocorrer, mas nos deixa sub entendido de que, se alguns aspectos forem mantidos e não houver um pensamento racional comum que possibilite a superação das estruturas coloniais e as diferenças étnicas que impeça a orientação de vários povos como um todo e não fragmentado, aquilo que se pode esperar como um Estado participativo de uma nação unificada torna-se inviável sob muitos aspectos e principalmente, a África se tornando um fragmentado território de muitas “identidades” e pouco conjunto, coesão, comum.


Capítulo 9 – Identidades Africanas.

Toda identidade humana é construída e histórica.
Appiah.

Este capítulo é o que se pode chamar de o “Clímax” do livro, pois nele o autor reúne seus pensamentos expostos na obra para dar sentido a sua principal afirmativa de que existe um perigo real e latente ao se formar as identidades baseadas na questão raça, pois a mesma “pressupõem falsidades demais para que as ignoremos” (p. 243) e adverte do perigo de que tais concepções podem proporcionar  muito mais desajustes do que soluções ou alternativas.

Appiah traça um histórico cultural do continente africano ressaltando a idéia de que a influência européia no continente anteriormente ao século XIX que proporcionasse uma mudança nos padrões culturais dos povos foi quase ínfima. Esta somente se dá por volta do final do século XIX e principalmente no período pós Primeira Guerra. Afirma que não há como traçar generalizações culturais para o continente devido a diversidade, mas que haveria alguns aspectos comuns como o campesinato sem senhor, porem sem formar uma identidade ao continente.

Para o autor, a raça não apenas forma conjuntos, mas exclui  no sentido de que parte do pressuposto do que é diferente, daquilo que não é, e certamente não poderá ser igual. Ainda mais, para Appiah, muitas destas construções de identidades são recentes e surgem como meios de se criar  alianças ou de sustentar objetivos que visem o favorecimento de alguns grupos em detrimentos de outros. Raça pode ser distorcida,  pode ocultar sob uma máscara de igualdade as reais tensões existentes dentro de um mesmo grupo ou uma mesma raça; não corresponde ao que é verossímil, mas aquilo que, baseado em alguns argumentos que para ele, em sua grande maioria, são refutáveis, se tornam reflexos de anseios presentes e que recorrem ao passado ou ao biológico para a busca de uma identidade que talvez nem sequer realmente tivesse ocorrido.
Contra as tradições ?
Não, porem reconhece que estas devem estar fundamentadas em um conceito de conjunto e que não se pode atribuir valores ou argumentar a favor ou contra “identidades”, porem, por se tratar de algo relativo, deve se considerar uma a uma, caso a caso.

A questão cerne evidente é a “raça” em sua mais cruel face; no aspecto que podemos presenciar através dos conflitos etno-regionais que assolam a África, que dizimam povos e que a tiram do rumo do desenvolvimento, ou seja,  Racismo.


Conclusão
   Na casa de meu pai é a síntese da gênese Africana. É a metáfora construtora dos ideais do autor. Uma África que apoiada sob alguns falsos valores, detêm seu real desenvolvimento, sendo a heterogeneidade distorcida sob valores que tentem em uma grande parte, apenas responder a objetivos particulares.

   Leonardo Boff, em um de seus livros, traz a metáfora da águia que criada entre galinhas, agia como tal, não despertando em si todo o real potencial que lhe cabia. Não há metáfora que melhor possa traduzir, em nossa opinião, o que realmente ocorre com o continente africano e seus povos. A ruptura na evolução natural dos povos; a aculturação forçada e a herança de estados que suplantaram qualquer fronteira geográfica anteriormente existente, legaram a estes povos sua realidade em “desconstrução”. Desconstrução da soberania, do presente.

Fonte: http://www.klepsidra.net/klepsidra16/nacasa.htm

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Aula extra

Caros alunos e alunas,
A aula extra realizar-se-á na próxima segunda-feira, dia 12/11, na sala 2.13.

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Filmes Conerning Violence e A Batalha de Argel

Título: Concerning Violence
Data de lançamento: 18 de setembro de 2014 (Alemanha)
Realização: Göran Olsson
Baseado em: "On violence" by Frantz Fanon (capítulo do livro Os condenados da Terra)
Produtora: Final Cut for Real
Elenco: Lauryn Hill (voz)
Produção: Annika Rogell, Tobias Janson

O realizador retoma imagens das guerras de independência da África que se desencadearam após a Segunda Guerra Mundial, exibidas na TV sueca.

Entrevista com o realizador sobre o filme aqui.




Título: A Batalha de Argel (1966)
Data de lançamento: 1 de junho de 1983 (Portugal)
Direção: Gillo Pontecorvo
Roteiro: Gillo Pontecorvo, Franco Solinas
Prêmios: Leão de Ouro, Prêmio BAFTA de Cinema: Prêmio das Nações Unidas
Produção: Saadi Yacef, Antonio Musu

A história da luta dos rebeldes argelinos e das medidas cada vez mais extremas tomadas pelo governo francês para reprimir o que logo se tornaria um revolta nacional, levando à declaração da independência da Argélia em 1962.

Filme completo aqui.



quinta-feira, 11 de outubro de 2018

As culturas nacionais como comunidades imaginadas - Stuart Hall

Stuart Hall
(A identidade cultural na pós-modernidade. SP: DP&A Editora, 2003, pág. 47 a 63)
Tendo descrito as mudanças conceptuais pelas quais os conceitos de sujeito e identidade da modernidade tardia e da pós-modernidade emergiram, me voltarei, agora, para a questão de como este "sujeito fragmentado" é colocado em termos de suas identidades culturais. A identidade cultural particular corra a qual estou preocupado é a identidade nacional (embora outros aspectos estejam aí implicados). O que está acontecendo à identidade cultural na modernidade tardia? Especificamente, como as identidades culturais nacionais estão sendo afetadas ou deslocadas pelo processo de globalização?
No mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos se constituem em uma das principais fontes de identidade cultural. Ao nos definirmos, algumas vezes dizemos que somos ingleses ou galeses ou indianos ou jamaicanos. Obviamente, ao fazer isso estamos falando de forma metafórica. Essas identidades não estão literalmente impressas em nossos genes. Entretanto, nós efetivamente pensamos nelas como se fossem parte de nossa natureza essencial.
O filósofo conservador Roger Scruton argumenta que:
A condição de homem (sic) exige que o indivíduo, embora exista e aja como um ser autônomo, faça isso somente porque ele pode primeiramente identificar a si mesmo como algo mais amplo - como um membro de uma sociedade, grupo, classe, estado ou nação, de algum arranjo, ao qual ele pode até não dar um nome, mas que ele reconhece instintivamente como seu lar (Scrutori, 1986, p. 156).
Ernest Gellner, a partir de uma posição mais liberal, também acredita que sem um sentimento de identificação nacional o sujeito moderno experimentaria um profundo sentimento de perda subjetiva:
A idéia de um homem (sic) sem uma nação parece impor uma (grande) tensão à imaginação moderna. Um homem deve ter uma nacionalidade, assim como deve ter um nariz e duas orelhas. Tudo isso parece óbvio, embora, sinto, não seja verdade. Mas que isso viesse a parecer tão obviamente verdadeiro é, de fato, um aspecto, talvez o mais central, do problema do nacionalismo. Ter uma nação não é um atributo inerente da humanidade, mas aparece, agora, como tal (Gellner, 1983, p. 6).
O argumento que estarei considerando aqui é que, na verdade, as identidades nacionais não são coisas com as quais nos nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação. Nós só sabemos o que significa ser “inglês" devido ao modo como a "inglesidade" (Englishness) veio a ser representada - como um conjunto de significados - pela cultura nacional inglesa. Segue-se que a nação não é apenas uma entidade política mas algo que produz sentidos - ­um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos/ãs legais de uma nação; elas participam da idéia da nação tal como representada em sua cultura nacional. Uma nação é uma comunidade simbólica e é isso que explica seu "poder para gerar um sentimento de identidade e lealdade" (Schwarz, 1986, p.106).
As culturas nacionais são uma forma distintivamente moderna. A lealdade e a identificação que, numa era pré-moderna ou em sociedades mais tradicionais, eram dadas à tribo, ao povo, à religião e à região, foram transferidas, gradualmente, nas sociedades ocidentais, à cultura nacional. As diferenças regionais e étnicas foram gradualmente sendo colocadas, de forma subordinada, sob aquilo que Gellner chama de "teto político" do estado-nação, que se tornou, assim, uma fonte poderosa de significados para as identidades culturais modernas.
A formação de uma cultura nacional contribuiu para criar padrões de alfabetização universais, generalizou uma única língua vernacular como o meio dominante de comunicação em toda a nação, criou uma cultura. homogênea e manteve instituições culturais nacionais, como, por exemplo, um sistema educacional nacional. Dessa e de outras formas, a cultura nacional se tornou uma característica-chave da industrialização e um dispositivo da modernidade. Não obstante, há outros aspectos de uma cultura nacional que a empurram numa direção diferente, trazendo à tona o que Homi Bhabha chama de "a ambivalência particular que assombra a idéia da nação" (Bhabha, 1990, p. 1). Algumas dessas ambigüidades são exploradas no capítulo 4. Na próxima seção discutirei como uma cultura nacional funciona como um sistema de .representação. Na seção seguinte, discutirei se as identidades nacionais são realmente tão unificadas e tão homogêneas como representam ser. Apenas quando essas duas questões tiverem sido respondidas é que poderemos considerar adequadamente o argumento de que as identidades nacionais foram uma vez centradas, coerentes e inteiras, mas que estão sendo agora deslocadas pelos processos de globalização.
Narrando a nação: uma comunidade imaginada
As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso - um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos (veja Penguin Dictionary of Sociology: verbete “discourse”). As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação", sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas. Como argumentou Benedict Anderson (1983), a identidade nacional é uma "comunidade imaginada".
Anderson argumenta que as diferenças entre as nações residem nas formas diferentes pelas quais elas são imaginadas. Ou, como disse aquele grande patriota britânico, Enoch Powell: "a vida das nações, da mesma forma que a dos homens, é vivida, em grande parte, na imaginação" (Powell, 1969, p. 245). Mas como é imaginada a nação moderna? Que estratégias representacionais são acionadas para construir nosso senso comum sobre o pertencimento ou sobre a identidade nacional? Quais são as representações, digamos, de "Inglaterra", que dominam as identificações e definem as identidades do povo "inglês"? "As nações", observou Homi Bhabha, "tais como as narrativas, perdem suas origens nos mitos do tempo e efetivam plenamente seus horizontes apenas nos olhos da mente" (Bhabha, 1990, p.l).Como é contada a narrativa da cultura nacional?
Dos muitos aspectos que uma resposta abrangente à questão incluiria selecionei cinco elementos principais:
  • Em primeiro lugar, há a narrativa da nação, tal como é contada e recontada nas histórias e nas literaturas nacionais, na mídia e na cultura popular. Essas fornecem uma série de estórias -imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam às experiências partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres  que dão sentido à nação. Como membros de tal "comunidade imaginada”, nos vemos, no olho de nossa mente, como compartilhando dessa narrativa. Ela dá significado e importância à nossa monótona existência, conectando nossas vidas cotidianas com um destino nacional que preexiste a nós e continua existindo após nossa morte. Desde a imagem de uma verde e agradável terra inglesa, com seu doce e tranqüilo interior, com seus chalés de treliças e jardins campestres - "a ilha coroada" de Shakespeare - até ás cerimônias públicas, o discurso da "inglesidade" (englishness) representa o que "a Inglaterra" é, dá. sentido à identidade de "ser inglês" e fixa. a "Inglaterra" como um foco de identificação nos corações ingleses (e anglófilos). Como observa Bill Schwarz:
Essas coisas formam a trama que nos prende invisivelmente ao passado. Do mesmo modo que o nacionalismo inglês é negado, assim também o é sua turbulenta e contestada história. 0 que ganhamos ao invés disso... é uma ênfase na tradição e na herança, acima de tudo na continuidade, de forma que nossa cultura política presente é vista como o florescimento de uma longa e orgânica evolução (Schwarz, 1986, p. 155).
  • Em segundo lugar, há a ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na intemporalidade.. A identidade nacional é representada como primordial - '`está lá, na verdadeira natureza das coisas", algumas vezes adormecida, mas sempre pronta para ser "acordada" de sua "longa, persistente e misteriosa sonolência", para reassumir sua inquebrantável existência (Gellner, 1983, p. 48). Os elementos essenciais do caráter nacional permanecem imutáveis, apesar de todas as vicissitudesda historia. Está lá desde o nascimento, unificado e continuo, "imutável" ao longo de todas as mudanças, eterno. A sra. Thatcher observou, na época da Guerra das Malvinas, que havia algumas pessoas "que pensavam que nós não poderíamos mais fazer as grandes coisas que uma vez havíamos feito... que a Grã-Bretanha não era mais a nação que tinha construído um Império e dominado um quarto do mundo... Bem, eles estavam errados... A Grã-Bretanha não mudou" (citado em Barnett, 1982, p. 63).
  • Uma terceira estratégia discursiva é constituída por aquilo que Hobsbawm e Ranger chamam de invenção da tradição: "Tradições que parecem ser ou alegam ser antigas são muitas vezes de origem bastante recente e algumas vezes inventadas... Tradição inventadasignifica um conjunto de práticas..., de natureza ritual ou simbólica, que buscam inculcar certos valores e normas; de comportamentos através da repetição, aqual, automaticamente, implica continuidade com um passado histórico adequado". Por exemplo, "nada parece ser reais antigo e vinculado ao passado imemorial do que a pompa que rodeia a monarquia britânica e suas manifestações cerimoniais públicas. No entanto..., na sua forma moderna, ela é o produto do final do século XIX e XX" (Hobsbawm e Ranger, 1.983, p.1).
  • Um quarto exemplo de narrativa da cultura nacional é a do mito fundacional: uma estória que localiza a origem da nação, do povo e de seu caráter nacional num passado tão distante que eles se perdem nas brumas do tempo, não do  tempo "real", mas de um tempo "mítico". Tradições inventadas tornam as confusões e os desastres da história inteligíveis, transformando a desordem em "comunidade" (por exemplo, a Blitz ou a evacuação durante a II Grande Guerra) e desastres em triunfos (por exemplo, Dunquerque). Mitos de origem também  ajudam povos desprivilegiados a conceberem e expressarem seu ressentimento e sua satisfação em termos inteligíveis” (Hobsbawm e Ranger, 1983, p. 1). Eles fornecem uma narrativa através da qual uma história alternativa ou uma contranarrativa, que precede às rupturas da colonização, pode ser construída (por exemplo, o rastafarianismo para os pobres despossuídos de Kingston, Jamaica; ver Hall, 1985). Novas nações são, então, fundadas sobre esses mitos. (Digo "mitos" porque, como foi o caso com muitas nações africanas que emergiram depois da descolonização, o que precedeu à colonização não foi "uma única nação, um único povo", mas muitas culturas e sociedades tribais diferentes).
  • A identidade nacional é também muitas vezes simbolicamente baseada na idéia de um povo ou folkpuro, original. Mas, nas realidades do desenvolvimento nacional, é raramente esse povo (folk) primordial que persiste ou que exercita o poder. Como, acidamente, observa Gellner: "Quando [os ruritananos] vestiram os trajes do povo e rumaram para as montanhas, compondo poemas nos clarões das florestas, eles não sonhavam em se tornarem um dia também poderosos burocratas, embaixadores e ministros" (1983, p. 61).
O discurso da cultura nacional não é, assim, tão moderno como aparenta ser. Ele constrói identidades que são colocadas, de modo ambíguo, entre o passado e o futuro. Ele se equilibra entre a tentação por retornar a glórias passadas e o impulso por avançar ainda mais em direção à modernidade. As culturas nacionais são tentadas, algumas vezes, a se voltar para o passado, a recuar defensivamente para aquele "tempo perdido", quando a nação era "grande"; são tentadas a restaurar as identidades passadas. Este constitui o elemento regressivo, anacrônico, da estória da cultura nacional. Mas freqüentemente esse mesmo retorno ao passado oculta uma luta para mobilizar as "pessoas" para que purifiquem suas fileiras, para que expulsem os "outros" que ameaçam sua identidade e para que se preparem para uma nova marcha para a frente. Durante os anos oitenta, a retórica do thatcherismo utilizou, algumas vezes, os dois aspectos daquilo que Tom Nairn chama de "face de Janus" do nacionalismo (Nairn, 1977):

olhar para trás, para as glórias do passado imperial e para os ..valores vitorianos" e, ao mesmo tempo, empreender uma espécie de modernização, em preparação para um novo estágio da competição capitalista global. Alguma coisa do mesmotipo pode estar ocorrendo na Europa Oriental. As áreas que se separam da antiga União Soviética reafirmam suas identidades étnicas essenciais e reivindicam uma nacionalidade sustentada por "estórias" (algumas vezes extremamente duvidosas) de origens míticas, de ortodoxia religiosa e de pureza racial. Contudo, elas podem também estar usando a nação como uma forma através da qual possam competir com outras "nações" étnicas e poder, assim, entrar no rico "clube" do Ocidente. Como tão agudamente observou Immanuel Wallerstein, "os nacionalismos do mundo moderno são a expressão ambígua [de um desejo] por... assimilação no universal... e, simultaneamente, por... adesão ao particular, à reinvenção das diferenças. Na verdade, trata-se de um universalismo através do particularismo e de um particularismo através do universalismo" (Wallerstein, 1984, pp. 166-7).
Desconstruindo a "cultura nacional": identidade e diferença
A seção anterior discutiu como uma cultura nacional atua como uma fonte de significados culturais, um foco de identificação e um sistema de representação. Esta seção volta-se agora para a questão de saber se as culturas nacionais e as identidades nacionais que elas constroem são realmente unificadas. Em seu famoso ensaio sobre o tema, Ernest Renan disse que três coisas constituem o principio espiritual da unidade de uma nação: "...a posse em comum de um rico legado de memórias..., o desejo de viver em conjunto e a vontade de perpetuar, de uma forma indivisiva, a herança que se recebeu" (Renan, 1990, p. 19). Devemos ter em mente esses três conceitos, ressonantes daquilo que constitui uma cultura nacional como uma. "comunidade imaginada": as memórias do passado; o desejo por viver em conjunto; a perpetuação da herança.
Timothy Brennan nos faz, lembrar que a palavra nação refere-se "tanto ao moderno estado­nação quanto a algo mais antigo e nebuloso - a natio - uma comunidade local, um domicílio, uma condição de pertencimento" (Brennan, 1990, p. 45). As identidades nacionais representam precisamente o resultado da reunião dessas duas metades da equação nacional - oferecendo tanto a condição de membro do estado-nação político quanto uma identificação com a cultura nacional: "tornar a cultura e a esfera política congruentes" e fazer com que "culturas razoavelmente homogêneas, tenham, cada uma, seu próprio teto político" (Gellner, 1983, p. 43). Gellner identifica claramente esse impulso por unificação, existente nas culturas nacionais:
... a cultura é agora o meio partilhado necessário, o sangue vital, ou talvez, antes, a atmosfera partilhada mínima, apenas no interior da qual os membros de uma sociedade podem respirar e sobreviver e produzir. Para uma dada sociedade, ela tem que ser uma atmosfera na qual podem todos respirar, falar e produzir; ela tem que ser, assim, a mesma cultura (Gellner, 1983, pp. 37­8).
Para dizer de forma simples: não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e grande família nacional. Mas seria a identidade nacional uma identidade unificadora desse tipo, uma identidade que anula e subordina a diferença cultural?
Essa idéia está sujeita à dúvida, por várias razões. Uma cultura nacional nunca foi um simples ponto de lealdade, união e identificação simbólica. Ela é também uma estrutura de poder cultural. Consideremos os seguintes pontos:
  • A maioria das nações consiste de culturas separadas que só foram unificadas por um longo processo de conquista violenta - isto é, pela supressão forçada da diferença cultural. "O povo britânico" é constituído por uma série desse tipo de conquistas - céltica, romana, saxônica, viking e normanda. Ao longo de toda a Europa, essa estória se repete ad nauseam. Cada conquista subjugou povos conquistados e suas culturas, costumes, línguas e tradições, e tentou impor uma hegemonia cultural mais unificada. Como observou Ernest Renan, esses começos violentos que se colocam nas origens das nações modernas têm, primeiro, que ser "esquecidos", antes que se comece a forjar a lealdade com uma identidade nacional mais unificada, mais homogênea. Assim, a cultura "britânica" não consiste de uma parceria igual entre as culturas componentes do Reino Unido, mas da hegemonia efetiva da cultura "inglesa", localizada no sul, que se representa a si própria como a cultura britânica essencial, por cima das culturas escocesas, galesas e irlandesas e, na verdade, por cima de outras culturas regionais. Matthew Arnold, que tentou fixar o caráter essencial do povo inglês a partir de sua literatura, afirmou, ao considerar os celtas, que esses "nacionalismos provinciais tiveram que ser absorvidos ao nível do político, e aceitos como contribuindo culturalmente para a cultura inglesa" (Dodd, 1986, p. 12).
  • Em segundo lugar, as nações são sempre compostas de diferentes classes sociais e diferentes grupos étnicos e de gênero.
O nacionalismo britânico moderno foi o produto de um esforço muito coordenado, no alto período imperial e no período vitoriano tardio, para unificar as classes ao longo de divisões sociais, ao provê-las com um ponto alternativo de identificação - pertencimento comum à "família da nação". Pode-se desenvolver o mesmo argumento a respeito do gênero. As identidades nacionais são fortemente generificadas. Os significados e os valores da "inglesidade" (englishrzess) têm fortes associações masculinas. As mulheres exercem um papel secundário como guardiãs do lar e do clã, e como "mães" dos "filhos" (homens) da nação.
  • Em terceiro lugar, as nações ocidentais modernas foram também os centros de impérios ou de esferas neoimperiais de influência, exercendo uma hegemonia cultural sobre as culturas dos colonizados. Alguns historiadores argumentam, atualmente, que foi nesse processo de comparação entre as "virtudes" da "inglesidade" (Englishness) e os traços negativos de outras culturas que muitas das características distintivas das identidades inglesas foram primeiro definidas (veja C. Hall, 1992).
Em vez de pensar as culturas nacionais unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade. Elas são atravessadas por profundas divisões e diferenças internas, sendo "unificadas" apenas através do exercício de diferentes formas de poder cultural. Entretanto - como nas fantasias do eu "inteiro" de que fala a psicanálise lacaniana­s identidades nacionais continuam a ser representadas como unificadas.
Uma forma de unificá-las tem sido a de representá-las como a expressão da cultura subjacente de "um único povo". A etnia é o termo que utilizamos para nos referirmos às características culturais - língua, religião, costume, tradições, sentimento de "lugar" - que são partilhadas por um povo. É tentador, portanto, tentar usar a etnia dessa forma "fundacional". Mas essa crença acaba, no mundo moderno, por ser um mito. A Europa Ocidental não tem qualquer nação que seja composta de apenas um único povo, uma única cultura ou etnia. As naçõesmodernas são, todas, híbridos culturais.
E ainda mais difícil unificar a identidade nacional em torno da raça. Em primeiro lugar, porque - contrariamente à crença generalizada - a raça não é uma categoria biológica ou genética que tenha qualquer validade científica. Há diferentes tipos e variedades, mas eles estão tão largamente dispersos no interior do que chamamos de "raças" quanto entre uma "raça" e outra. A diferença genética - o último refúgio das ideologias racistas - não pode ser usada para distinguir um povo do outro, A raça é uma categoria discursiva e não uma categoria biológica. Isto é, ela é a categoria organizadora daquelas formas de falar, daqueles sistemas de representação e práticas sociais (discursos) que utilizam um conjunto frouxo, freqüentemente pouco específico, de diferenças em termos de características físicas - cor da pele, textura do cabelo, características físicas e corporais, etc. - como marcas simbólicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo de outro.
Naturalmente o caráter não científico do termo "raça" não afeta o modo "como a lógica racial e os quadros de referência raciais são articulados e acionados, assim como não anula suas conseqüências (Donald e Rattansi,1992, p.1). Nos últimos anos, as noções biológicas sobre raça, entendida como constituída de espécies distintas (noções que subjaziam a formas extremas da ideologia e do discurso nacionalista em períodos anteriores: o eugenismo vitoriano, as teorias européias sobre raça, o fascismo) têm sido substituídas por definições culturais, as quais possibilitam que a raça desempenhe um papel importante nos discursos sobre nação e identidade nacional. Paul Gilroy tem analisado as ligações entre, de um lado, o racismo cultural e a idéia de raça e, de outro, as idéias de nação, nacionalismo e pertencimento nacional:
Enfrentamos, de forma crescente, um racismo que evita ser reconhecido como tal, porque é capaz de alinhar "raça" com nacionalidade, patriotismo e nacionalismo. Um racismo que tomou uma distância necessária das grosseiras idéias de inferioridade e superioridade biológica busca, agora, apresentar uma definição imaginária da nação como uma comunidade cultural unificada. Ele constrói e defende uma imagem de cultura nacional – homogênea na sua branquidade, embora precária e eternamente vulnerável ao ataque dos inimigos internos e externos... Este é um racismo que responde à turbulência social e política da crise e à administração da crise através da restauração da grandeza nacional na imaginação. Sua construção onírica de nossa ilha coroada como etnicamente purificada propicia um especial conforto contra as devastações do declínio (nacional) (Gílroy, 1992, p.87).
Mas mesmo quando o conceito de "raça" é usado dessa forma discursiva mais ampla, as nações modernas teimosamente se recusam a ser determinadas por ela. Como observou Renan, "as nações lideres da Europa são nações de sangue essencialmente misto: a França é [ao mesmo tempo] céltica, ibérica e germânica. A Alemanha é germânica, céltica e eslava. A Itália é o país onde... gauleses, etruscos, pelagianos e gregos, para não mencionar outros, se intersectam numa mistura indecifrável. As ilhas britânicas, consideradas como um todo, apresentam uma mistura de sangue celta e germânico, cujas proporções são particularmente difíceis de definir” ( Renan, 1990, pp. 14-15). E essas são misturas relativamente simples se compradas com as encontradas na Europa Central e Oriental.
Este breve exame solapa a idéia da nação como uma identidade cultural unificada. As identidades nacionais não subordinam todas as outras formas de diferença e não estão livres do jogo de poder, de divisões e contradições internas, de lealdades e de diferenças sobrepostas. Assim, quando vamos discutir se as identidades nacionais estão sendo deslocadas, devemos ter em mente a forma pela qual as culturas nacionais contribuem para “costurar” as diferenças numa única identidade.

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