terça-feira, 7 de maio de 2019
quinta-feira, 14 de março de 2019
"Black Mirror, Black Face" por Gisela Casimiro
Black Mirror, Black Face
Gisela Casimiro
Sou uma pessoa
sensível. Tive, durante a maior parte da minha vida, um estômago de avestruz e
uma pele que nunca me deu trabalho excepto pela cor que tenho. Não sou muito
picuinhas com os produtos de beleza. A regra de ouro é hidratação completa, de
cima a baixo, todos os dias. Aquele antigo ditado português que diz: put
the cream, sabem? Sou discreta na minha sensibilidade, mesmo quando é a pele a
sofrer. Mas a verdade é que a minha pele, o meu rosto, raras vezes são tela
para maquilhagem, embora goste da dita e aprecie vê-la bem aplicada. Não tenho
quase nenhuma, pelo menos comparando com a maioria das mulheres (e alguns
homens), e guardo-a para ocasiões especiais; nunca faço uma make completa,
escolho sempre as coisas mais básicas, e só tive uma embalagem de base na vida.
Talvez por isso me recorde demasiado bem da primeira vez que fui maquilhada por
uma amiga, antes de uma saída à noite; depois, por uma conselheira de beleza
numa loja da especialidade (achei que não parecia eu em nenhuma das vezes), por
maquilhadoras profissionais, que também trabalham em teatro, antes de participar
num programa de televisão (adorei). Talvez seja como habituarmo-nos a ouvir a
nossa voz gravada, melhora com o tempo. Não impede que saiba quais são as
tendências, que conheça a linha de produtos de palete inclusiva de Rihanna, ou
assista aos populares vídeos da Vogue, em que podemos ver celebridades como
Pablo Vittar aplicar maquilhagem em dez ou quinze minutos (que nunca o são
realmente, com todo o fast forward e as coisas que a dita diz já ter
feito antes de começar a gravar).
O Carnaval passou. Este
ano não o celebrei, mas reflecti bastante sobre. O melhor foi ver as fotos e
vídeos dos filhos dos amigos, mascarados, e os filhos dos desconhecidos, nos
comboios, na rua, em todo o lado. O pior foi ver escolas, como no caso de Matosinhos,
em que professores e demais funcionários se mascararam de negros e, inclusive,
foram dadas indicações aos alunos para irem vestidos como tal. É o negro ainda
uma coisa, e coisa tão passível de ser objectificada e banalizada, que pode ser
descaracterizada assim tão gratuitamente? Como pode uma criança africana ou
afro descendente ir para a escola de negro, quando é negra o tempo todo e,
mesmo se calha esquecer-se por um momento, e a achar-se apenas humana, a
própria escola a recorda, limita, ostraciza?
Finalmente comprei uma
máscara de carvão activado, algo que há muito me suscitava curiosidade, por
este ingrediente ser agora usado em tudo e para tudo; confesso que, também, por
me lembrar o black face. Em frente ao espelho, apliquei a dita seguindo meticulosamente
as instruções da embalagem e, depois, removi-a, lentamente e sempre na mesma
direcção. Saiu quase inteira. Pousei aquele retrato dermatológico na bancada do
lavatório e pensei, eis a minha black face. A minha amiga Diana chama-lhe mask
face (ela entende muito de maquilhagem). Achei o termo interessante, bem melhor
que black face. Não conheço, de facto, nenhum negro, nem aqueles descritos como
tendo um tom de pele preto-azulado, cuja fisionomia seja sequer próxima da
daquele rosto inanimado que me olhava. Deitei-a fora e retive esta palavra:
máscara.
Ainda se crê, em pleno
2019, que ser negro é uma fantasia para usar nos três dias de Carnaval, ou no
Halloween. Pinta-se a cara porque dá menos trabalho do que pintar também as
mãos e o resto, afinal nem é preciso prestar-se a tamanha cerimónia, isto é uma
coisa temporária, o resultado fica à vista de todos, literalmente in your
face. Agora sou negra, agora já não sou. Obrigada, água micelar. Obrigada,
toalhita desmaquilhante. Se eu, por nunca usar maquilhagem, me esqueço dela
quando a tenho, da minha identidade nunca me dispo nem esqueço. Se, há uns
anos, desamiguei uma antiga colega do secundário por ter postado fotos, no seu
Facebook, em que ela e uma colega de trabalho se mascaravam de negras, com
caras pintadas de preto ou castanho escuro, perucas afro e nomes a quererem-se
tribais, exóticos ou impronunciáveis, para completar os figurinos, hoje já não
o faço. Outro dia, no espaço de minutos, vi uma foto de perfil de alguém
mascarado de índio, a qual lhe mereceu inúmeros elogios e, depois, a foto de
três pessoas, uma das quais conheço, vestidas de negras, não menos
caricaturadas e caricatas do que a polémica vestimenta berbere de Madonna há
uns meses numa cerimónia de prémios. Em sua defesa, a rainha da Pop disse (mas)
“I love my dress”. E ninguém pode acusar Madonna de racismo, afinal tem mais
filhos adoptivos (4, negros, do Malawi) do que biológicos (2).
Eu também sei que essas
pessoas, as mascaradas no meu feed, adoram negros, adoram índios, e até têm
amigos que são. Mas ofendem, insultam. Provavelmente mais por ignorância do que
por qualquer outro motivo. Teimosia, também. Como se a afronta, por não ser
intencional, tivesse de ser tolerada por quem é dela alvo. Poderia encontrar
uma falsa lógica nestes episódios que mais lembram a série Black Mirror,
por estas pessoas nunca terem convivido com membros da comunidade indígena e os
mesmos lhes parecerem uma qualquer criação romanesca. Mas qual a desculpa para
todas as outras etnias? As que andam por todo o lado? Ou não se repara nelas
excepto quando se tenta, e mal, imitar quem nos parece ser e se quer considerar
“todos iguais”? Os mesmos que continuamos a tratar de formas diferentes. Porque
se o nosso primo ou a nossa avó não são um disfarce, porque é que mais alguém
seria? E nós, somos? Ou vocês, que eu sendo negra já o sou, claramente.
Acredito que temos de continuar a educar-nos uns aos outros, a explicar de
forma mais ou menos directa as razões de índios e negros não serem fantasias de
Carnaval (existe, no youtube, um vídeo excelente de Fernanda Carlone, que
recomendo, por responder à pergunta “O que é o black face e qual é o mal?”, que
muitas pessoas ainda fazem). Acredito que temos de denunciar, reportar,
criticar. Acredito que aceitar a diferença é aceitar uma opinião diferente
também, ainda que seja sobre a nossa/vossa boa intenção.
Recentemente, a Gucci
retirou do mercado uma camisola de gola alta que subia até ao nariz, deixando
um buraco na boca, delineada como se por um grosso batom vermelho. A Burberry
achou engraçado criar uma linha de hoodies com nós de forca como colares. O
público não entendeu a piada. Katy Perry criou uma linha de sapatos com caras
africanas, negras e, arrisco dizer, albinas também, inspiradas talvez em peças
de arte do continente. A Prada tinha um porta-chaves também considerado
racista, a velha dicotomia macaco/negro. Ninguém viu o mal em nenhum destes
produtos até terem sido postos à venda, talvez por não haver pessoas negras em
posições suficientemente relevantes ou, de todo, nestas empresas, que se
revoltassem e demonstrassem a razão de serem ofensivos. O público, no entanto,
não perdoa, e a ameaça de boicote é real. O problema começa bem antes da
criação: começa na contratação de conselheiros e designers de outras etnias,
numa indústria ainda predominantemente branca, que possam interromper a sequer
criação de tais peças e inspirar uma criatividade histórica, social e
culturalmente consciente. Um outro problema é a compra e venda de marcas de
sucesso criadas por africanos, a brancos, que o fazem como forma de acabar com
a concorrência, no entanto aniquilando também marcas para todos em prol da
continuação da expansão de marcas apenas para alguns. A responsabilidade é de
todas as partes, pois o que afecta uma minoria afecta todas, e as minorias têm
de saber que um legado é mais importante do que um lucro imediato.
Daqui a uns dias faço
outra máscara. E quando é que eu posso trocar a minha pele por outra? Não que
eu quisesse. Seria mais fácil? Com certeza. Seria melhor? Não. O melhor de cada
um é o que cada um já é ou pode vir a ser. Eu não serei mais caucasiana do que
alguma vez terei olhos azuis (os sapatos de Katy Perry têm-nos, curiosamente). No
seu poema “A woman speaks”, Audre Lorde termina com “I am woman / and not white.”
Que é como quem diz, há outras cores para seres humanos, e há outras cores para
géneros. Há outras possibilidades para fantasias. Há, também, a necessidade de
estarmos em contacto com a realidade, pois ela dura bem mais do que uma
qualquer efeméride. Se o Carnaval é cultura e tradição, convém lembrar que
ser-se humano não o é menos. Algumas homenagens não são senão hipocrisias e o
perpetuar de histórias que são muito diferentes conforme quem as conta. No
próximo ano, se Carnavalar não ofenda. O tempo passado em frente ao espelho a
mascarar-se de alguém que nem existe talvez possa ser passado a olhar o outro e
a tentar conhecer, ouvir, estar lá para quem é, não duvidem, bem real. Há
coisas que não podemos nem devemos mudar. Mas façamos algo por aquelas que
estão nas nossas mãos, nos nossos rostos e, sobretudo, nas nossas vozes e
consciências. Porque há coisas que não podemos nem devemos aceitar.
terça-feira, 5 de fevereiro de 2019
segunda-feira, 7 de janeiro de 2019
Pauta com as notas provisórias
Notas indicativas a partir dos trabalhos (trabalho principal, visionamento de filmes, recensões críticas), participação nas aulas (presenças, intervenções e apresentações). A pauta definitiva estará no fénix depois das vossas reacções!
Ana Paula Tavares
Comunicação Intercultural – TP5 – Prof.ª Ana Paula Tavares
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Número
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Nomes
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Nota
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154107
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Abdul Azize Jaló
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?
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151150
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Adriana Beatriz dos Reis Costa
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12
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154108
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Adulai Djaló
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?
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154312
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Aissatu Nhamajo Seidi
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12
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153317
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Akson Caiangeme da Costa
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12
|
153310
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Alecé Quintino Nancassa
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12
|
154311
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Alexandre Miguel Pacheco Ferreira
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11
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153005
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Alícia Pinto Ferreira
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14
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153299
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Álvaro Penhor Amado
|
?
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153623
|
Ana Bárbara Silvestre Inácio dos Santos
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10
|
151203
|
Ana Carolina Silva Figueiredo
|
?
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153203
|
Ana Goes Ferreira Mota
|
14
|
148454
|
Ana Paula Pinto Macedo
|
13
|
151059
|
André Ferreira Moreira
|
17
|
154406
|
Bárbara Alves Patrício
|
12
|
149452
|
Bárbara João Viegas Fernandes
|
14
|
152885
|
Barbara Schwab
|
?
|
153305
|
Beatriz Pinto Romão
|
11
|
150856
|
Caroline Vitória de Beires Solal
|
11
|
153300
|
Daniela Augusta Galhardo Marques de Oliveira
|
14
|
154109
|
Denicio da Silva
|
?
|
153782
|
Denise Alexandra Torres Dias
|
12
|
148429
|
Diogo Daniel Martins Sanches
|
16
|
153673
|
Diogo Miguel Brandão Duarte
|
14
|
153316
|
Edlindo António Eduardo Fernandes Rodrigues
|
16
|
152889
|
Elisa Pellegrinelli
|
16
|
148916
|
Emanuel José Rodrigues da Cruz
|
?
|
153315
|
Fabiana Ferreira Xavier
|
15
|
152991
|
Federica Pasotti
|
16
|
154117
|
Fodé Sanha
| |
154372
|
Gonçalo Miguel Palheta de Felgueiras
|
13
|
153302
|
Inês dos Santos Gomes
|
12
|
153709
|
Inês Ferreira Braz Dinis Vaz
|
14
|
151181
|
Inês Gonçalves Bravo Palma
|
16
|
153700
|
Inês Isabel Nogueira Marques
|
10
|
147326
|
Inês Silva Santos Soares
|
?
|
151064
|
Isabel Maria Pontes da Costa
|
17
|
152956
|
Jenny Caforio
|
16
|
153768
|
Joana Gregório Bastos
|
16
|
153744
|
Joana Sofia Castelo Branco Bolinhas
|
14
|
153582
|
Joana Sofia Rafael Pereira
|
14
|
153307
|
João Luís Góis Valério
|
?
|
151204
|
João Pedro Fernandes Pinto
|
?
|
150953
|
José Maria Garcia do Couto
|
17
|
147303
|
Juliana Louro Santos
|
?
|
150931
|
Madalena Gonçalves Jordão
|
12
|
153309
|
Márcia da Silva Ferreira
|
12
|
153590
|
Margarida Pinheiro Faria dos Santos Spencer
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15
|
153570
|
Maria Beatriz Santos Rodrigues Ventura de Oliveira
|
14
|
151904
|
Mariana Guedes Simão
|
13
|
153802
|
Marina Fernandes Corrêa dos Santos
|
12
|
112095
|
Marisa Alexandra Silva Nunes
|
17
|
52407
|
MARTA SOFIA CARDOSO LEITÃO
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16
|
147238
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Mauro Filipe Anunciação Valério Leitão
|
?
|
154103
|
Nene Mendes Ninte
|
?
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153304
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Neuza Patrícia Figueiredo Raposo
|
13
|
52346
|
NÍDIA RICARDINA DIAS DE PAIVA
|
15
|
153739
|
Patricia Alexandra dos Santos Morganheiro
|
11
|
153036
|
Paulo Jorge Ascêncio Rodrigues Colaço da Costa
|
?
|
153314
|
Pedro Alexandre de Carvalho Oliveira
|
12
|
153301
|
Raquel Rocha Ferreira
|
12
|
153308
|
Ricardo Monteiro Valente Pimenta
| |
153803
|
Rita Maria Sousa Pereira da Silva
|
14
|
148812
|
Rui Daniel Pereira Lopes
|
13
|
148378
|
Sara Barateiro Marques
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?
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153318
|
Sara Cristina de Jesus Costa
|
13
|
153303
|
Sérgio António Dala
|
?
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146268
|
Silvia Prata Tavares
|
12
|
153313
|
Tchutchu João Sami
|
?
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150520
|
Valdemira Boa Esperança Conceição Paquete
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13
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153312
|
Venâncio Henrique Dias Silva
|
?
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153571
|
Viviana Pontedeira Vieira Parente
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14
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quinta-feira, 6 de dezembro de 2018
quarta-feira, 5 de dezembro de 2018
"Pode o subalterno falar?" Gayatri Spivak
Livro completo aqui.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. (2010). Pode o Subalterno Falar? Belo Horizonte: Editora UFMG
Bruno Sciberras de Carvalho é professor adjunto de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador do Núcleo de Estudos em Teoria Política (NUTEP-IFCS)
Já foi muito comentada a dificuldade de entendimento da escrita de Gayatri C. Spivak. A pensadora indiana, reconhecida, a princípio, pelo influente prefácio e tradução para o inglês de Da Gramatologia de Jacques Derrida, certamente não pode ser tida por uma autora de fácil acesso. Deve-se notar ainda, no contexto brasileiro, a ausência de publicações de obras de Spivak já consagradas no exterior, sobretudo no ambiente intelectual anglo-saxão, como In Other Worlds: essays in cultural politics (1987) e A Critique of Postcolonial Reason: towards a history of the vanishing present (1999). Portanto, a publicação de Pode o Subalterno Falar?, pela Editora UFMG, é de suma importância para maior difusão e compreensão das novas abordagens da chamada reflexão pós-colonialista, que no Brasil tem se tornado reconhecida, sobretudo, por meio dos trabalhos de Edward Said e Homi Bhabha.
Como o título do trabalho indica – publicado pela primeira vez como um dos textos do livro Marxism and the Interpretation of Culture, editado por Laurence Grossberg e Cary Nelson em 1988 –, a questão central de Gayatri Spivak refere-se ao tema da agência dos sujeitos, transposta no questionamento da possibilidade de os subalternos “falarem” ou terem autonomia. É importante perceber, a princípio, que tal questionamento problematiza suposições do pensamento pós-colonialista e dos chamados estudos subalternos, sobretudo noções de resistência e ação política expressas por autores dessas correntes. Nesse sentido, a temática particular do trabalho reflete tanto diferenças da autora em relação a essas vertentes teóricas, que muitas vezes lhe são associadas, quanto aproximações. Por um lado, enfatiza-se a crítica a quaisquer concepções baseadas na soberania do sujeito, mesmo as que estariam presentes em Deleuze e Foucault – o que já caracteriza originalidade e densidade analítica do trabalho – e, por outro, manifesta-se uma divergência às ênfases que autores do pós-colonialismo – vide produção tardia de Edward Said, por exemplo – dão a certas capacidades de agência de indivíduos, grupos e movimentos sociais.
A questão mais relevante que Spivak busca desenvolver, presente em outros trabalhos da autora, é a crítica a concepções de um sujeito coletivo homogêneo e monolítico. Os questionamentos aos essencialismos condizem com uma definição singular de cultura (Spivak, 2006: 359), tomada como conjunto não preciso nem rígido de premissas que se encontram ativas e em movimento, ainda que constituam, em certo nível, um grupo de crenças e de suposições organizadas, fatores levados a cabo inclusive pelo trabalho analítico. Mas são estas mesmas suposições que se constituem como recursos e meios para a inovação e mudança. Portanto, a cultura não pode ser tida por uma instância monolítica ou estanque que determinaria as ações ou um sujeito. Assim, a autora enfatiza que se devemos trabalhar com categorias que refletem movimentos abrangentes este deve ser caracterizado pela heterogeneidade. Daí a importância do intelectual não falar no lugar do subalterno, dado que tal ação sempre tende a pressupor uma essência a ser articulada
pelo discurso especializado. Uma questão medular é questionar as formas pelas quais os sujeitos do terceiro mundo têm sido representados pelos discursos hegemônicos. Um exemplo seria a categoria “trabalhador” (Spivak, 2010: 23-24) que, quando referenciada a um contexto mundial, nega a divisão internacional do trabalho e as conjecturas do capitalismo global.
Pode o Subalterno Falar? destaca o inexorável descentramento do sujeito. A fim de mostrar a importância desse pressuposto para sua teoria, Spivak desenvolve uma argumentação crítica a respeito de dois autores ocidentais que, em geral, são tidos por pensadores da heterogeneidade e do Outro: Deleuze e Foucault. Segundo a autora, buscando exatamente o contrário, embora com matizes, ambos restaurariam a categoria de sujeito soberano. Com base em uma conversa dos dois autores (Os Intelectuais e o Poder: conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze), Spivak evoca os problemas da suposição de um desejo indiferenciado a guiar a agência, o que configuraria um componente parassubjetivo que introduz um sujeito indivisível. Consequentemente, sendo tal desejo disseminado, tem-se a suposição da capacidade de ação e fala que omite as contradições inerentes a um sistema capitalista que introduz ampla divisão internacional do trabalho. Destaque especial também é dado por Spivak ao papel da ideologia, algo que, no seu entender, nem Foucault nem Deleuze privilegiaram adequadamente, já que seus trabalhos manifestariam uma relação mecânica – pretensamente controlada pelos agentes – entre desejo e interesse e uma valorização não questionada do oprimido como sujeito indivisível e autônomo (Spivak, 2010: 26-30). Os autores não teriam destacado, fundamentalmente, as dificuldades e impasses de reflexões contra-hegemônicas. Além disso, de forma problemática, suas suposições de sujeito pressuporiam um fazer teórico capaz de estar desconectado de contradições constitutivas ou de dimensões ideológicas, apontando a possibilidade de o(a) pensador(a) representar (ou falar por) um grupo, sobretudo os oprimidos. Nesse caso, Spivak atenta para a sugestão de uma concepção errônea de representação, que une dois sentidos diferentes do termo: representação como “falar por” (vertretung), relacionada com as instituições políticas e a suposição de conhecimento e substituição do representado, e representação como “re-presentação” (darstellung), vinculada a dimensões estéticas e de encenação.
Spivak (2010: 35-43) recorre a Marx para fundamentar sua concepção de sujeito dividido e descontínuo, algo que poderia ser bem definido com base na discussão sobre a consciência de classe em O 18º Brumário. Assim, a ausência de consciência coletiva dos camponeses franceses – que, por um lado, formam uma classe por compartilharem condições econômicas similares, mas que, por outro, não a formam por não terem um sentimento de comunidade – encontra uma espécie de portador ou “representante” que parece trabalhar para outros interesses, o que configura uma situação de descontinuidade entre os pequenos camponeses, o “representante” e o fenômeno histórico-político. A representação aqui se articula com os âmbitos do Estado e da lei, definida, portanto, no sentido de vertreten, não se ligando à efetiva capacidade de sujeitos oprimidos falarem ou agirem por si mesmos, ainda que o processo reflita exatamente a tentativa, bem sucedida no caso, de se forçar uma cumplicidade entre as dimensões da representação política (vertretung) e da “re-presentação” (darstellung). Como Marx sentencia (apud Spivak, 2010: 35), os pequenos proprietários camponeses não podiam se representar, devendo ser representados. É a diferença entre as duas concepções de representação, assim como suas conexões complexas, que Spivak, seguindo Marx, quer chamar atenção, algo que revela as dificuldades de agenciamento individual e coletivo, assim como – dada a dificuldade de se apropriar efetivamente das condições materiais de existência – a descontinuidade entre a dimensão da consciência e sua transformação. Entender como opera o poder, portanto, deve levar em conta a dimensão ideológica, ou o que a autora denomina “textura micrológica”, que forma os sujeitos e solidifica os âmbitos macrológicos do capitalismo global e do Estado-nação.
As dificuldades de agenciamento e os problemas de se supor um sujeito essencializado e autônomo são ilustrados na discussão da abordagem colonial britânica em relação ao sacrifício de viúvas indianas (sati) e suas tradições hinduístas, análise que ocupa a parte final do livro. Deve-se notar que a referência às mulheres indianas não é fortuita, pois expressa as violências epistêmicas do subproletariado urbano relacionadas com a divisão internacional do trabalho, o que problematiza ainda mais as capacidades de agência. A seção final de Pode o Subalterno Falar? termina com a tese de Spivak, tomada como a resposta à pergunta que dá nome ao livro, da impossibilidade de agenciamento ou resistência “correta” dos oprimidos. A autora exemplifica tal incapacidade a partir do suicídio de uma jovem indiana ocorrido na cidade de Calcutá em 1926. A resposta pronta e automática para explicar tal tipo de morte era a suposição de um caso amoroso ilícito ou gravidez indesejada. Contudo, o que desafiava o senso comum era o fato de a jovem estar menstruada à época do ocorrido, o que contrariava as narrativas transparentes. Por conseguinte, o ato foi tido por algo delirante e sem sentido. Por meio de pesquisa e conexões com a família da jovem, Spivak revela que a mesma pertencera a uma organização política, tendo ficado incumbida de um atentando contra certa autoridade do Estado. O suicídio, portanto, teria sido resultado da incapacidade da jovem de realizar tal ação, assim como a inaptidão em viver sem levar a cabo a tarefa. Spivak (2010: 123-124) argumenta que o gesto de esperar a menstruação reflete um deslocamento que buscaria desafiar os roteiros predefinidos para a mulher subalterna indiana – que, inclusive, era proibida de se imolar durante o período menstrual. O fato de a jovem ter sido incompreendida mostraria, exemplarmente, como o subalterno não pode falar nem ser ouvido. O suicídio de viúvas, assim como as prontas narrativas explicativas, era prática comum no território indiano, o que expressava um papel subordinado das mulheres. Contudo, quando os agentes imperiais britânicos conceberam o sacrifício como prática fora da lei, de modo a preservar vidas, nada mais fizeram do que reproduzir a ideia do “homem branco salvando mulheres” em um contexto não-ocidental. Além disso, Spivak sustenta que, posteriormente ao fim do período colonial, a mulher indiana teria continuado a ser condenada ao silêncio devido à força das representações de gênero pós-independência, que a mantinham em posição dependente e, no caso do sacrifício, a tomavam, nostalgicamente, como tendo “vontade de se suicidar”.
De modo mais abrangente, e em relação ao que pode ser denominado como teoria pós-colonialista, a originalidade da argumentação de Spivak em Pode o Subalterno Falar? refere-se à crítica aos relatos de representação do oprimido que, por trás de um verniz libertário, acabam por ajudar na manutenção de práticas essencialistas e imperialistas que resultam em violência epistêmica cotidiana. O questionamento a certas direções negativas do conhecimento é similar ao desenvolvido por Edward Said. Contudo, na medida em que Spivak destaca as dificuldades de agenciamento coletivo que necessariamente os sujeitos devem enfrentar, aponta para um problema não plenamente articulado nos trabalhos do autor palestino. Spivak (2010: 85-87) assinala, sobretudo, os perigos das análises que buscam a “consciência” dos grupos subordinados. O problema central seria a incapacidade de percepção das dificuldades, tanto do pesquisador quanto dos movimentos sociais, de se desafiar certa cadeia hegemônica de signos. Assim, os sucessos ou fracassos de deslocamentos do campo discursivo não devem, em geral, ser relacionados a um maior nível, ou progresso, de consciência de uma realidade social (Spivak, 2008: 36-37). Além disso, seria permanente o problema de toda investigação tender para uma busca positivista que tenta “revelar” a verdade de um sujeito, grupo ou classe, o que gera vastas consequências negativas. Ao invés de tal direção, a autora propõe, dada a irreversibilidade da utilização analítica de certas concepções descritivas com tendências essencializantes, um restrito uso “estratégico” da noção de consciência (idem: 46-47), tendo em vista sua artificialidade e transitoriedade que, não obstante, pode gerar uma percepção crítica profícua. No campo político, paralelamente, pode-se recorrer a um “essencialismo estratégico” que leve em conta o caráter provisional das identificações, único modo de se limitar os perigos da adoção de um discurso iluminado de agência política e de auto-representação.
Na medida em que Spivak ressalta os problemas do fazer teórico, tende, contraditoriamente, a limitar a potencialidade de sua própria reflexão, que também, no limite, tenderia a codificar identidades. O perigo essencial, ao fim e ao cabo, é reforçar a subordinação e o silêncio dos subalternos. Tal crítica é lugar comum em várias recepções da obra da autora. Assim, quando tenta entender a fala alheia através da concepção de interceptação, que sugere algo apropriado entre dois pontos, o entendimento do outro deve invocar, necessariamente, um deslocamento que subverte uma compreensão verdadeira (cf. Didur e Heffernan, 2003: 4). Mesmo com as precauções manifestas, isto acarretaria uma contradição no próprio sentido do trabalho da autora, que em vários momentos tem de responder sobre a intenção precisa de sua reflexão em relação aos subalternos, já que limitada epistemologicamente e incapaz de representar adequadamente seu objeto (cf. Maggio: 428-429). Deve-se notar que tal discussão dos limites do conhecimento em relação às teses de Spivak reflete outra dessemelhança frente ao “pós-colonialismo” de Edward Said (2007), que prefere, diferentemente, desenvolver a noção de “humanismo secular”, apostando, em linhas gerais, na geração de um pensamento libertário baseado na justaposição de argumentos e teorias.
Tais discussões e apontamentos de possíveis contradições não diminuem a fecundidade da leitura de “Pode o Subalterno Falar?”. Apesar dos quase 25 anos de distância de sua publicação original, o texto continua a debater questões marcadamente contemporâneas. Em tempos de força política do multiculturalismo e do comunitarismo, com suas concepções demarcadas de identidade, a crítica de Spivak aos essencialismos mantém-se como desafio necessário. A contemporaneidade do texto pode ser percebida na reelaboração efetuada por Spivak no capítulo “História” do livro “A Critique of Postcolonial Reason” (1999), em que a autora retoma as mesmas questões, embora ressaltando, particularmente, um novo contexto de globalização em que agências de desenvolvimento e organizações não-governamentais são protagonistas de nova missão colonial e “benevolente” de representação dos subalternos.
Bibliografia
DIDUR, J.; HEFFERNAN, T. (2003) “Revisiting the Subaltern in the New Empire”. Cultural Studies, v. 17, n. 1, pp. 1-15.
MAGGIO, J. (2007). “Can the Subaltern Be Heard? Political Theory, Translation, Representation, and Gayatri Chakravorty Spivak”. Alternatives, v. 32, n. 4, pp. 419-443.
SAID, E. (2007). Humanismo e Crítica Democrática. Companhia das Letras, São Paulo.
SPIVAK, G. C. (1999) A Critique of Postcolonial Reason. Towards a History of the Vanishing Present. Harevard university Press, Cambridge.
______ (2008) “Estudios de la Subalternidad. Deconstruyendo la Historiografía” In. Sandro Mezzadra (comp.) Estudios postcoloniales. Ensayos fundamentales. Editora Traficantes de Sueños, Madrid.
______ (2006) “Culture Alive”. Theory, Culture & Society, v. 23 (2-3); pp. 359-360.
______ (2010) Pode o Subalterno Falar? Editora UFMG, Belo Horizonte.
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