quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Filmes Conerning Violence e A Batalha de Argel

Título: Concerning Violence
Data de lançamento: 18 de setembro de 2014 (Alemanha)
Realização: Göran Olsson
Baseado em: "On violence" by Frantz Fanon (capítulo do livro Os condenados da Terra)
Produtora: Final Cut for Real
Elenco: Lauryn Hill (voz)
Produção: Annika Rogell, Tobias Janson

O realizador retoma imagens das guerras de independência da África que se desencadearam após a Segunda Guerra Mundial, exibidas na TV sueca.

Entrevista com o realizador sobre o filme aqui.




Título: A Batalha de Argel (1966)
Data de lançamento: 1 de junho de 1983 (Portugal)
Direção: Gillo Pontecorvo
Roteiro: Gillo Pontecorvo, Franco Solinas
Prêmios: Leão de Ouro, Prêmio BAFTA de Cinema: Prêmio das Nações Unidas
Produção: Saadi Yacef, Antonio Musu

A história da luta dos rebeldes argelinos e das medidas cada vez mais extremas tomadas pelo governo francês para reprimir o que logo se tornaria um revolta nacional, levando à declaração da independência da Argélia em 1962.

Filme completo aqui.



quinta-feira, 11 de outubro de 2018

As culturas nacionais como comunidades imaginadas - Stuart Hall

Stuart Hall
(A identidade cultural na pós-modernidade. SP: DP&A Editora, 2003, pág. 47 a 63)
Tendo descrito as mudanças conceptuais pelas quais os conceitos de sujeito e identidade da modernidade tardia e da pós-modernidade emergiram, me voltarei, agora, para a questão de como este "sujeito fragmentado" é colocado em termos de suas identidades culturais. A identidade cultural particular corra a qual estou preocupado é a identidade nacional (embora outros aspectos estejam aí implicados). O que está acontecendo à identidade cultural na modernidade tardia? Especificamente, como as identidades culturais nacionais estão sendo afetadas ou deslocadas pelo processo de globalização?
No mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos se constituem em uma das principais fontes de identidade cultural. Ao nos definirmos, algumas vezes dizemos que somos ingleses ou galeses ou indianos ou jamaicanos. Obviamente, ao fazer isso estamos falando de forma metafórica. Essas identidades não estão literalmente impressas em nossos genes. Entretanto, nós efetivamente pensamos nelas como se fossem parte de nossa natureza essencial.
O filósofo conservador Roger Scruton argumenta que:
A condição de homem (sic) exige que o indivíduo, embora exista e aja como um ser autônomo, faça isso somente porque ele pode primeiramente identificar a si mesmo como algo mais amplo - como um membro de uma sociedade, grupo, classe, estado ou nação, de algum arranjo, ao qual ele pode até não dar um nome, mas que ele reconhece instintivamente como seu lar (Scrutori, 1986, p. 156).
Ernest Gellner, a partir de uma posição mais liberal, também acredita que sem um sentimento de identificação nacional o sujeito moderno experimentaria um profundo sentimento de perda subjetiva:
A idéia de um homem (sic) sem uma nação parece impor uma (grande) tensão à imaginação moderna. Um homem deve ter uma nacionalidade, assim como deve ter um nariz e duas orelhas. Tudo isso parece óbvio, embora, sinto, não seja verdade. Mas que isso viesse a parecer tão obviamente verdadeiro é, de fato, um aspecto, talvez o mais central, do problema do nacionalismo. Ter uma nação não é um atributo inerente da humanidade, mas aparece, agora, como tal (Gellner, 1983, p. 6).
O argumento que estarei considerando aqui é que, na verdade, as identidades nacionais não são coisas com as quais nos nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação. Nós só sabemos o que significa ser “inglês" devido ao modo como a "inglesidade" (Englishness) veio a ser representada - como um conjunto de significados - pela cultura nacional inglesa. Segue-se que a nação não é apenas uma entidade política mas algo que produz sentidos - ­um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos/ãs legais de uma nação; elas participam da idéia da nação tal como representada em sua cultura nacional. Uma nação é uma comunidade simbólica e é isso que explica seu "poder para gerar um sentimento de identidade e lealdade" (Schwarz, 1986, p.106).
As culturas nacionais são uma forma distintivamente moderna. A lealdade e a identificação que, numa era pré-moderna ou em sociedades mais tradicionais, eram dadas à tribo, ao povo, à religião e à região, foram transferidas, gradualmente, nas sociedades ocidentais, à cultura nacional. As diferenças regionais e étnicas foram gradualmente sendo colocadas, de forma subordinada, sob aquilo que Gellner chama de "teto político" do estado-nação, que se tornou, assim, uma fonte poderosa de significados para as identidades culturais modernas.
A formação de uma cultura nacional contribuiu para criar padrões de alfabetização universais, generalizou uma única língua vernacular como o meio dominante de comunicação em toda a nação, criou uma cultura. homogênea e manteve instituições culturais nacionais, como, por exemplo, um sistema educacional nacional. Dessa e de outras formas, a cultura nacional se tornou uma característica-chave da industrialização e um dispositivo da modernidade. Não obstante, há outros aspectos de uma cultura nacional que a empurram numa direção diferente, trazendo à tona o que Homi Bhabha chama de "a ambivalência particular que assombra a idéia da nação" (Bhabha, 1990, p. 1). Algumas dessas ambigüidades são exploradas no capítulo 4. Na próxima seção discutirei como uma cultura nacional funciona como um sistema de .representação. Na seção seguinte, discutirei se as identidades nacionais são realmente tão unificadas e tão homogêneas como representam ser. Apenas quando essas duas questões tiverem sido respondidas é que poderemos considerar adequadamente o argumento de que as identidades nacionais foram uma vez centradas, coerentes e inteiras, mas que estão sendo agora deslocadas pelos processos de globalização.
Narrando a nação: uma comunidade imaginada
As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso - um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos (veja Penguin Dictionary of Sociology: verbete “discourse”). As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação", sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas. Como argumentou Benedict Anderson (1983), a identidade nacional é uma "comunidade imaginada".
Anderson argumenta que as diferenças entre as nações residem nas formas diferentes pelas quais elas são imaginadas. Ou, como disse aquele grande patriota britânico, Enoch Powell: "a vida das nações, da mesma forma que a dos homens, é vivida, em grande parte, na imaginação" (Powell, 1969, p. 245). Mas como é imaginada a nação moderna? Que estratégias representacionais são acionadas para construir nosso senso comum sobre o pertencimento ou sobre a identidade nacional? Quais são as representações, digamos, de "Inglaterra", que dominam as identificações e definem as identidades do povo "inglês"? "As nações", observou Homi Bhabha, "tais como as narrativas, perdem suas origens nos mitos do tempo e efetivam plenamente seus horizontes apenas nos olhos da mente" (Bhabha, 1990, p.l).Como é contada a narrativa da cultura nacional?
Dos muitos aspectos que uma resposta abrangente à questão incluiria selecionei cinco elementos principais:
  • Em primeiro lugar, há a narrativa da nação, tal como é contada e recontada nas histórias e nas literaturas nacionais, na mídia e na cultura popular. Essas fornecem uma série de estórias -imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam às experiências partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres  que dão sentido à nação. Como membros de tal "comunidade imaginada”, nos vemos, no olho de nossa mente, como compartilhando dessa narrativa. Ela dá significado e importância à nossa monótona existência, conectando nossas vidas cotidianas com um destino nacional que preexiste a nós e continua existindo após nossa morte. Desde a imagem de uma verde e agradável terra inglesa, com seu doce e tranqüilo interior, com seus chalés de treliças e jardins campestres - "a ilha coroada" de Shakespeare - até ás cerimônias públicas, o discurso da "inglesidade" (englishness) representa o que "a Inglaterra" é, dá. sentido à identidade de "ser inglês" e fixa. a "Inglaterra" como um foco de identificação nos corações ingleses (e anglófilos). Como observa Bill Schwarz:
Essas coisas formam a trama que nos prende invisivelmente ao passado. Do mesmo modo que o nacionalismo inglês é negado, assim também o é sua turbulenta e contestada história. 0 que ganhamos ao invés disso... é uma ênfase na tradição e na herança, acima de tudo na continuidade, de forma que nossa cultura política presente é vista como o florescimento de uma longa e orgânica evolução (Schwarz, 1986, p. 155).
  • Em segundo lugar, há a ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na intemporalidade.. A identidade nacional é representada como primordial - '`está lá, na verdadeira natureza das coisas", algumas vezes adormecida, mas sempre pronta para ser "acordada" de sua "longa, persistente e misteriosa sonolência", para reassumir sua inquebrantável existência (Gellner, 1983, p. 48). Os elementos essenciais do caráter nacional permanecem imutáveis, apesar de todas as vicissitudesda historia. Está lá desde o nascimento, unificado e continuo, "imutável" ao longo de todas as mudanças, eterno. A sra. Thatcher observou, na época da Guerra das Malvinas, que havia algumas pessoas "que pensavam que nós não poderíamos mais fazer as grandes coisas que uma vez havíamos feito... que a Grã-Bretanha não era mais a nação que tinha construído um Império e dominado um quarto do mundo... Bem, eles estavam errados... A Grã-Bretanha não mudou" (citado em Barnett, 1982, p. 63).
  • Uma terceira estratégia discursiva é constituída por aquilo que Hobsbawm e Ranger chamam de invenção da tradição: "Tradições que parecem ser ou alegam ser antigas são muitas vezes de origem bastante recente e algumas vezes inventadas... Tradição inventadasignifica um conjunto de práticas..., de natureza ritual ou simbólica, que buscam inculcar certos valores e normas; de comportamentos através da repetição, aqual, automaticamente, implica continuidade com um passado histórico adequado". Por exemplo, "nada parece ser reais antigo e vinculado ao passado imemorial do que a pompa que rodeia a monarquia britânica e suas manifestações cerimoniais públicas. No entanto..., na sua forma moderna, ela é o produto do final do século XIX e XX" (Hobsbawm e Ranger, 1.983, p.1).
  • Um quarto exemplo de narrativa da cultura nacional é a do mito fundacional: uma estória que localiza a origem da nação, do povo e de seu caráter nacional num passado tão distante que eles se perdem nas brumas do tempo, não do  tempo "real", mas de um tempo "mítico". Tradições inventadas tornam as confusões e os desastres da história inteligíveis, transformando a desordem em "comunidade" (por exemplo, a Blitz ou a evacuação durante a II Grande Guerra) e desastres em triunfos (por exemplo, Dunquerque). Mitos de origem também  ajudam povos desprivilegiados a conceberem e expressarem seu ressentimento e sua satisfação em termos inteligíveis” (Hobsbawm e Ranger, 1983, p. 1). Eles fornecem uma narrativa através da qual uma história alternativa ou uma contranarrativa, que precede às rupturas da colonização, pode ser construída (por exemplo, o rastafarianismo para os pobres despossuídos de Kingston, Jamaica; ver Hall, 1985). Novas nações são, então, fundadas sobre esses mitos. (Digo "mitos" porque, como foi o caso com muitas nações africanas que emergiram depois da descolonização, o que precedeu à colonização não foi "uma única nação, um único povo", mas muitas culturas e sociedades tribais diferentes).
  • A identidade nacional é também muitas vezes simbolicamente baseada na idéia de um povo ou folkpuro, original. Mas, nas realidades do desenvolvimento nacional, é raramente esse povo (folk) primordial que persiste ou que exercita o poder. Como, acidamente, observa Gellner: "Quando [os ruritananos] vestiram os trajes do povo e rumaram para as montanhas, compondo poemas nos clarões das florestas, eles não sonhavam em se tornarem um dia também poderosos burocratas, embaixadores e ministros" (1983, p. 61).
O discurso da cultura nacional não é, assim, tão moderno como aparenta ser. Ele constrói identidades que são colocadas, de modo ambíguo, entre o passado e o futuro. Ele se equilibra entre a tentação por retornar a glórias passadas e o impulso por avançar ainda mais em direção à modernidade. As culturas nacionais são tentadas, algumas vezes, a se voltar para o passado, a recuar defensivamente para aquele "tempo perdido", quando a nação era "grande"; são tentadas a restaurar as identidades passadas. Este constitui o elemento regressivo, anacrônico, da estória da cultura nacional. Mas freqüentemente esse mesmo retorno ao passado oculta uma luta para mobilizar as "pessoas" para que purifiquem suas fileiras, para que expulsem os "outros" que ameaçam sua identidade e para que se preparem para uma nova marcha para a frente. Durante os anos oitenta, a retórica do thatcherismo utilizou, algumas vezes, os dois aspectos daquilo que Tom Nairn chama de "face de Janus" do nacionalismo (Nairn, 1977):

olhar para trás, para as glórias do passado imperial e para os ..valores vitorianos" e, ao mesmo tempo, empreender uma espécie de modernização, em preparação para um novo estágio da competição capitalista global. Alguma coisa do mesmotipo pode estar ocorrendo na Europa Oriental. As áreas que se separam da antiga União Soviética reafirmam suas identidades étnicas essenciais e reivindicam uma nacionalidade sustentada por "estórias" (algumas vezes extremamente duvidosas) de origens míticas, de ortodoxia religiosa e de pureza racial. Contudo, elas podem também estar usando a nação como uma forma através da qual possam competir com outras "nações" étnicas e poder, assim, entrar no rico "clube" do Ocidente. Como tão agudamente observou Immanuel Wallerstein, "os nacionalismos do mundo moderno são a expressão ambígua [de um desejo] por... assimilação no universal... e, simultaneamente, por... adesão ao particular, à reinvenção das diferenças. Na verdade, trata-se de um universalismo através do particularismo e de um particularismo através do universalismo" (Wallerstein, 1984, pp. 166-7).
Desconstruindo a "cultura nacional": identidade e diferença
A seção anterior discutiu como uma cultura nacional atua como uma fonte de significados culturais, um foco de identificação e um sistema de representação. Esta seção volta-se agora para a questão de saber se as culturas nacionais e as identidades nacionais que elas constroem são realmente unificadas. Em seu famoso ensaio sobre o tema, Ernest Renan disse que três coisas constituem o principio espiritual da unidade de uma nação: "...a posse em comum de um rico legado de memórias..., o desejo de viver em conjunto e a vontade de perpetuar, de uma forma indivisiva, a herança que se recebeu" (Renan, 1990, p. 19). Devemos ter em mente esses três conceitos, ressonantes daquilo que constitui uma cultura nacional como uma. "comunidade imaginada": as memórias do passado; o desejo por viver em conjunto; a perpetuação da herança.
Timothy Brennan nos faz, lembrar que a palavra nação refere-se "tanto ao moderno estado­nação quanto a algo mais antigo e nebuloso - a natio - uma comunidade local, um domicílio, uma condição de pertencimento" (Brennan, 1990, p. 45). As identidades nacionais representam precisamente o resultado da reunião dessas duas metades da equação nacional - oferecendo tanto a condição de membro do estado-nação político quanto uma identificação com a cultura nacional: "tornar a cultura e a esfera política congruentes" e fazer com que "culturas razoavelmente homogêneas, tenham, cada uma, seu próprio teto político" (Gellner, 1983, p. 43). Gellner identifica claramente esse impulso por unificação, existente nas culturas nacionais:
... a cultura é agora o meio partilhado necessário, o sangue vital, ou talvez, antes, a atmosfera partilhada mínima, apenas no interior da qual os membros de uma sociedade podem respirar e sobreviver e produzir. Para uma dada sociedade, ela tem que ser uma atmosfera na qual podem todos respirar, falar e produzir; ela tem que ser, assim, a mesma cultura (Gellner, 1983, pp. 37­8).
Para dizer de forma simples: não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e grande família nacional. Mas seria a identidade nacional uma identidade unificadora desse tipo, uma identidade que anula e subordina a diferença cultural?
Essa idéia está sujeita à dúvida, por várias razões. Uma cultura nacional nunca foi um simples ponto de lealdade, união e identificação simbólica. Ela é também uma estrutura de poder cultural. Consideremos os seguintes pontos:
  • A maioria das nações consiste de culturas separadas que só foram unificadas por um longo processo de conquista violenta - isto é, pela supressão forçada da diferença cultural. "O povo britânico" é constituído por uma série desse tipo de conquistas - céltica, romana, saxônica, viking e normanda. Ao longo de toda a Europa, essa estória se repete ad nauseam. Cada conquista subjugou povos conquistados e suas culturas, costumes, línguas e tradições, e tentou impor uma hegemonia cultural mais unificada. Como observou Ernest Renan, esses começos violentos que se colocam nas origens das nações modernas têm, primeiro, que ser "esquecidos", antes que se comece a forjar a lealdade com uma identidade nacional mais unificada, mais homogênea. Assim, a cultura "britânica" não consiste de uma parceria igual entre as culturas componentes do Reino Unido, mas da hegemonia efetiva da cultura "inglesa", localizada no sul, que se representa a si própria como a cultura britânica essencial, por cima das culturas escocesas, galesas e irlandesas e, na verdade, por cima de outras culturas regionais. Matthew Arnold, que tentou fixar o caráter essencial do povo inglês a partir de sua literatura, afirmou, ao considerar os celtas, que esses "nacionalismos provinciais tiveram que ser absorvidos ao nível do político, e aceitos como contribuindo culturalmente para a cultura inglesa" (Dodd, 1986, p. 12).
  • Em segundo lugar, as nações são sempre compostas de diferentes classes sociais e diferentes grupos étnicos e de gênero.
O nacionalismo britânico moderno foi o produto de um esforço muito coordenado, no alto período imperial e no período vitoriano tardio, para unificar as classes ao longo de divisões sociais, ao provê-las com um ponto alternativo de identificação - pertencimento comum à "família da nação". Pode-se desenvolver o mesmo argumento a respeito do gênero. As identidades nacionais são fortemente generificadas. Os significados e os valores da "inglesidade" (englishrzess) têm fortes associações masculinas. As mulheres exercem um papel secundário como guardiãs do lar e do clã, e como "mães" dos "filhos" (homens) da nação.
  • Em terceiro lugar, as nações ocidentais modernas foram também os centros de impérios ou de esferas neoimperiais de influência, exercendo uma hegemonia cultural sobre as culturas dos colonizados. Alguns historiadores argumentam, atualmente, que foi nesse processo de comparação entre as "virtudes" da "inglesidade" (Englishness) e os traços negativos de outras culturas que muitas das características distintivas das identidades inglesas foram primeiro definidas (veja C. Hall, 1992).
Em vez de pensar as culturas nacionais unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade. Elas são atravessadas por profundas divisões e diferenças internas, sendo "unificadas" apenas através do exercício de diferentes formas de poder cultural. Entretanto - como nas fantasias do eu "inteiro" de que fala a psicanálise lacaniana­s identidades nacionais continuam a ser representadas como unificadas.
Uma forma de unificá-las tem sido a de representá-las como a expressão da cultura subjacente de "um único povo". A etnia é o termo que utilizamos para nos referirmos às características culturais - língua, religião, costume, tradições, sentimento de "lugar" - que são partilhadas por um povo. É tentador, portanto, tentar usar a etnia dessa forma "fundacional". Mas essa crença acaba, no mundo moderno, por ser um mito. A Europa Ocidental não tem qualquer nação que seja composta de apenas um único povo, uma única cultura ou etnia. As naçõesmodernas são, todas, híbridos culturais.
E ainda mais difícil unificar a identidade nacional em torno da raça. Em primeiro lugar, porque - contrariamente à crença generalizada - a raça não é uma categoria biológica ou genética que tenha qualquer validade científica. Há diferentes tipos e variedades, mas eles estão tão largamente dispersos no interior do que chamamos de "raças" quanto entre uma "raça" e outra. A diferença genética - o último refúgio das ideologias racistas - não pode ser usada para distinguir um povo do outro, A raça é uma categoria discursiva e não uma categoria biológica. Isto é, ela é a categoria organizadora daquelas formas de falar, daqueles sistemas de representação e práticas sociais (discursos) que utilizam um conjunto frouxo, freqüentemente pouco específico, de diferenças em termos de características físicas - cor da pele, textura do cabelo, características físicas e corporais, etc. - como marcas simbólicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo de outro.
Naturalmente o caráter não científico do termo "raça" não afeta o modo "como a lógica racial e os quadros de referência raciais são articulados e acionados, assim como não anula suas conseqüências (Donald e Rattansi,1992, p.1). Nos últimos anos, as noções biológicas sobre raça, entendida como constituída de espécies distintas (noções que subjaziam a formas extremas da ideologia e do discurso nacionalista em períodos anteriores: o eugenismo vitoriano, as teorias européias sobre raça, o fascismo) têm sido substituídas por definições culturais, as quais possibilitam que a raça desempenhe um papel importante nos discursos sobre nação e identidade nacional. Paul Gilroy tem analisado as ligações entre, de um lado, o racismo cultural e a idéia de raça e, de outro, as idéias de nação, nacionalismo e pertencimento nacional:
Enfrentamos, de forma crescente, um racismo que evita ser reconhecido como tal, porque é capaz de alinhar "raça" com nacionalidade, patriotismo e nacionalismo. Um racismo que tomou uma distância necessária das grosseiras idéias de inferioridade e superioridade biológica busca, agora, apresentar uma definição imaginária da nação como uma comunidade cultural unificada. Ele constrói e defende uma imagem de cultura nacional – homogênea na sua branquidade, embora precária e eternamente vulnerável ao ataque dos inimigos internos e externos... Este é um racismo que responde à turbulência social e política da crise e à administração da crise através da restauração da grandeza nacional na imaginação. Sua construção onírica de nossa ilha coroada como etnicamente purificada propicia um especial conforto contra as devastações do declínio (nacional) (Gílroy, 1992, p.87).
Mas mesmo quando o conceito de "raça" é usado dessa forma discursiva mais ampla, as nações modernas teimosamente se recusam a ser determinadas por ela. Como observou Renan, "as nações lideres da Europa são nações de sangue essencialmente misto: a França é [ao mesmo tempo] céltica, ibérica e germânica. A Alemanha é germânica, céltica e eslava. A Itália é o país onde... gauleses, etruscos, pelagianos e gregos, para não mencionar outros, se intersectam numa mistura indecifrável. As ilhas britânicas, consideradas como um todo, apresentam uma mistura de sangue celta e germânico, cujas proporções são particularmente difíceis de definir” ( Renan, 1990, pp. 14-15). E essas são misturas relativamente simples se compradas com as encontradas na Europa Central e Oriental.
Este breve exame solapa a idéia da nação como uma identidade cultural unificada. As identidades nacionais não subordinam todas as outras formas de diferença e não estão livres do jogo de poder, de divisões e contradições internas, de lealdades e de diferenças sobrepostas. Assim, quando vamos discutir se as identidades nacionais estão sendo deslocadas, devemos ter em mente a forma pela qual as culturas nacionais contribuem para “costurar” as diferenças numa única identidade.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Aula de 9 de Outubro

A aula de dia 9 de Outubro será dada pelo professor Carlos Almeida.
O tema será "Ouvir o Outro".

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Proposta de temas de trabalho


Comunicação e história
Comunicação e diferença
Cultura
Cultura e mudança
Diferença
Hierarquia
Fronteira
Transculturação
Representação
Representação da diferença
Diferença e racismo
Linguagem
Poder
Estereótipos
Migrações
Nação
Cidadania
Diálogo


Bibliografia:

BALIBAR, Étienne, 2005, We the people of Europe. Reflections on Transnational Citinzenship. Princeton and Oxford: Princeton University Press

BHABHA, Homi, K. [1994]  2013,O local da Cultura, Ufmg.

SANCHES, Manuela Ribeiro, 2011, Malhas que os Impérios tecem. Textos anticoloniais. Contextos pós-coloniais. Lisboa, Edições 70.

SCHUBERT, Fernando Luís e Eduardo Worlf (Org.), 2014, Pensar o Contemporâneo, Portalegre, Arquipélago Editorial.

AAVV, Podemos viver sem o outro?, 2008, Lisboa, Tinta da China/Fundação Calouste Gulbenkian.


"Podemos viver sem o outro?" - Ruy Duarte de Carvalho

Para ler e preparar a apresentação para a aula de 4/10/2018.

Tempo de ouvir o ‘outro’ enquanto o “outro” existe, antes que haja só o outro... Ou pré - manifesto neo-animista

…… fazendo eu parte, cívica, emotiva e intelectualmente, da categoria geral do OUTRO em relação à Europa, também por outro lado a questão do OUTRO, e dadas as condições fenotípicas e de origem que me assistem, tem feito sempre parte da minha experiência existencial e pessoal dentro do próprio contexto, africano e angolano, em que venho exercendo a vida e ofício……  isso me tem levado, para poder ver se consigo entender o mundo e entender-me nele e com ele, a identificar e a reconhecer uma multiplicidade de OUTROS…….. no presente caso retive apenas três categorias de OUTRO, que são as que me parecem capazes de permitir-me  tentar expor o que poderei ter para dizer aqui……….

…..considerarei aqui como OUTRO, sublinhado ou em itálico, os indivíduos e os grupos, muitos deles já nascidos ou constituídos no territórios das ex-metrópoles a partir de genitores ex-colonizados ou provenientes de ex-colónias e que hoje integram, de pleno direito estatutário, as populações nacionais dessas mesmas ex-metrópoles embora reconhecidos como diferentes da massa dominante através de traços fenotípicos ou culturais……… como ‘OUTRO’, entre apóstrofos, o ex-colonizado ocidentalizado com que o ocidente lida nos contextos das ex-colónias…….. e finalmente como “OUTRO”, entre aspas, aquele sujeito marcado por traços afetos a populações que, integradas embora como nacionais em estados-nação que hoje existem a partir de contornos ex-coloniais, mantêm usos, praticas e comportamentos mais afins a quadros pré-coloniais do que pós-coloniais ou mais ou menos ocidentalizados…….. quer dizer, subsiste  aí, em muitos casos, um “outro” não, ou ainda não completamente,  ocidentalizado ……. . o qual no decurso de um presente que é também o nosso, continua a ser objeto, evidentemente, de uma pressão ocidentalizante que acaba por ser a marca dominante do seu comum dia a dia de pessoas que à luz dos proclamados direitos do homem valem tanto como quaisquer outras pessoas no mundo……….

……só que a sua situação e a sua condição se revelam tão diferenciadas nos contextos nacionais em que subsistem, que da mesma maneira que aqui na Europa, onde estou agora a falar, as ex-metrópoles parece não saberem muito bem às vezes  o que fazer com o outro,  em itálico, que vem ao mundo em território seu, também o ‘outro’, entre apóstrofos, que gere os territórios das ex-colónias, parece também por seu lado ter dificuldade em saber o que fazer com esse “outro”, plenamente entre aspas………

………. este será, em meu entender,  um dos problemas, um dos impasses colocados ao mundo de hoje pelo processo histórico que veio a configurá-lo e continua a dinamizá-lo tal como ele hoje existe, e é evidente que estou a falar da expansão ocidental como ela se tem desenvolvido e mantém em curso……………..

**
……… outros problemas porém, muitos dos quais, de novo em meu entender, acabam por constituir-se ou configurar-se como impasses, assistem ao mundo de hoje na decorrência, precisamente, e insisto, da expansão ocidental e do lugar que a matriz ocidental  de civilização acabou por impor ao mundo inteiro……….  de um modo tal, aliás, que as evidências de uma situação assim não deixam de suceder-se e impor-se cada vez com mais premência, como está acontecendo exatamente neste preciso momento com a crise financeira que o mundo está enfrentando………. parece que o mundo ocidental, e ocidentalizado, não pode decididamente ignorar mais a necessidade urgente  de fazer alguma de inédito por si mesmo………. do que nestas últimas semanas tenho insistentemente ouvido a tal respeito, retenho apenas que todos as instituições e os governos ocidentais chamados a pronunciar-se sobre a crise em presença se viram perante a necessidade de afirmar que as suas atuais preocupações dominantes com a finança não devem nem podem ofuscar, nem preterir, nem retardar a preocupação  vital e global com a saúde, a preservação e salvação ambiental do planeta………. e mais ainda que os develloping countries, que não são exatamente aqueles que mais imediatamente são convocados para encarar a crise do mundo geral, ocidental e ocidentalizado, exigem ser ouvidos quanto antes……..

………… e é aqui que me ocorre formular a seguinte pergunta: sendo que o mundo global reconhece ter de fazer imperativamente alguma coisa por si mesmo em relação à sorte global do globo, sendo que as vozes emergentes terão obrigatoriamente de ser ouvidas, não seria talvez então também já agora altura de atender ao que toda a espécie de vozes que o mundo ainda comporta poderá ter eventualmente a dizer no interesse talvez de todos? …………. mesmo as vozes daquele “outro” que eu aqui identifico envolvido entre cerradas aspas ?………que podemos viver sem ele, recorrendo ao mote deste encontro, talvez possamos, até porque ele vai inexoravelmente desaparecer, mas não seria pertinente, para o debate e para a sorte do mundo, tentar ou ensaiar ouvi-lo ainda, enquanto existe ?………

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………… estou a sair da Namíbia onde de há cinco meses a esta parte tenho usufruído do luxo de poder dedicar-me exclusivamente a um livro que estou escrevendo ……….. é um livro de meia-ficção, na sequência de outros em que tenho tentado essa modalidade, e cuja ação se desenvolve em grande parte no sudoeste de Angola e no noroeste da Namíbia, onde subsistem precisamente populações que eu posso identificar com o tal OUTRO absoluto que tenho vindo a referir…..  quando recebi lá o convite para participar neste encontro acedi sem grande hesitação porque em meu entender me via colocado uma vez mais numa situação em que a realidade vem ao encontro da ficção e poderia de alguma forma integrar o estar agora aqui no programa que me tinha anteriormente imposto e via assim interrompido……….  na trama do enredo que tenho vindo tratando nesse livro em curso, dois dos seus personagens concebem a certa altura poder ter para propor ao mundo, a partir das cosmologias e das cosmogonias locais, australo-africanas, para o caso, a figura de um herói tutelar perfeitamente adequado às preocupações, às aflições e às urgências que parecem impor ao mundo em que vivemos uma resposta pronta, eficaz, adequada e no entanto bem difícil de conjeturar ou conceber porque essas preocupações, aflições e urgências decorrem afinal de pressupostos e de dinâmicas que o mundo moderno, ao mesmo tempo, parece pouco disposto a por em causa………….

……… o herói em questão dá pelo nome de Nambalisita, e é figura de grande estatura no imaginário e na expressões das populações da região a que me referi e que também costumo identificar como mancha clânica pastoril do sudoeste da África, constituída sobretudo por populações herero, ovambo e nyaneka …….. Nambalisita, com quem eu lido de muito perto desde que há mais de um quarto de século rodei um filme chamado Nelisita, é aquele que se gerou a si mesmo…… ele nasce de um ovo auto-fecundado…….  e contra o mal e os maus e os desconcertos do mundo, Nambalisita faz  apelo aos animais todos da criação, seus irmãos, os seus rapazes, e até mesmo à criação inteira………

………. só que, sabem os personagens do meu livro muito bem, não será fácil propor um herói desses ao mundo ocidental e ocidentalizado que detém as rédeas do mundo e dos seus destinos…. Nambalisita emerge de uma matriz  cosmogónica e cosmológica que não é a que conferiu ao ocidente o poder para vir a ocupar o lugar que hoje ocupa no mundo globalizado………..  enquanto para nós aqui, nesta borda da África, refere um desses personagens,  para a nossa maneira de ver as coisas  a tudo quanto é vivo assiste uma alma igual que afinal cada ser vivo, seja ele pessoa, hiena ou lagartixa,  exprime, vivendo, conforme o corpo de que dispõe, para os brancos e para aqueles que os brancos converteram, domesticaram à maneira deles, é tão só o corpo que identifica o homem enquanto  animal, porque o que o que constitui como homem é ter uma alma de que o resto da criação não dispõe…….. é essa a expressão da razão, da arrogância e da soberba invasora……… ela coloca o homem fora da condição biológica como se ele estivesse a salvo de tal baixeza e partilhasse com deus, só ele e não o resto da criação toda, da condição divina……….. o homem no centro do universo e a servir de medida a tudo, até a deus……. antropoformização de tudo, mesmo de deus…….. o  divino configurado como um  deus branco de barbas brancas………….. tudo domesticado segundo um modelo que previa até o selvagem que nós seríamos aqui, um meio-humano que só tem acesso ao patamar da humanidade, só é verdadeiramente humano, quando aferido em relação não à medida do resto da criação no mundo, mas à da maneira de certos  homens que têm uma versão do mundo e da vida que  impõem aos outros, e armas, meios e dispositivos para tirar benefício  disso……. o universo feito para uso deles e, em nome de deus e da civilização, autorizados a converter entretanto o mundo todo, divino, humano, animado e inanimado, às suas maneiras, à sua maneira……….. uma maneira, a do paradigma que cobriu a expansão ocidental, portanto, que não pecava afinal por sobreestimar as pessoas……… não as colocava mas é tão alto quanto lhes cabe…….. porque mesmo depois de ter chegado o tempo das descolonizações e da entrega  das soberanias  locais aos ocidentalizados que provinham das populações indígenas anteriormente encontradas, o que de facto aconteceu foi legar-lhes, sem nação ou arranjo pluri-nacional, uma herança envenenada de estados modernos definidos por fronteiras políticas coloniais historicamente recentes e alheias aos diferentes e muitas vezes distintos grupos ou sociedades envolvidos ou retalhados……….. e exigiu-se-lhes de pronto o desempenho de estados-nação num mundo universal onde as regionalides dominantes em vias de consumação no quadro político das globalidades operam, ao mesmo tempo, no sentido de se desembaraçarem dessa figura política de estado-nação, como está acontecendo por exemplo com a Comunidade Europeia……….

……..só uma grande volta paradigmática, portanto, acrescenta então outro personagem plenamente ao corrente das terminologias ocidentais………… paradigmática e verdadeiramente pragmática……. mas que não contemplasse esses pragmatismos oportunistas e cínicos em que a categoria do necessário e do vantajoso substituiu completamente a do possível e consistem em não conseguir encarar nada sem fazer logo as contas do beneficio parcial que a  situação inspira e não olhar para o mundo senão em função disso ……..

……. da mesma maneira que seria necessário ter em conta  que a uma tal volta paradigmática não bastaria admitir que o “OUTRO” pudesse ser capaz de ver os fenómenos e o  mundo e avaliá-los e equacioná-los e aproveitar-se deles segundo as suas razões e os seus interesses, como faz o ocidental…. isso não é volta paradigmática nenhuma, é uma questão de bom senso………            volta paradigmática será admitir, e reconhecer, que alguém, mesmo sendo o “OUTRO”, pensando de uma maneira radicalmente diferente, possa conseguir ver certas coisas e certos fenómenos de uma maneira melhor e mais adequada à efetiva configuração do mundo, e que os ocidentais e os ocidentalizados,  nesse caso,  é que teriam a aprender com o “OUTRO”, e que isso acabaria por convir a todos……….. uma volta, assim, que permitisse, perante os impasses que a expansão e a imposição  do paradigma  ocidental produz no mundo inteiro – inclusive  nessas partes do mundo de onde ele saiu porque estão agora a contas com o troco, que são os filhos dos ex-colonizados, que estão a nascer lá – , permitisse ao próprio saber ocidental achar ser tempo de prestar uma atenção diferente aos chamados discursos arcaicos, dar-se a uma contra-descoberta, por assim dizer, daqueles que antes foram descobertos pelas caravelas……… o que talvez, na linguagem dos especialistas, pudesse ser formulado dizendo que seria tempo de ouvir o ‘outro’ enquanto o “outro” ainda existe, antes que haja só o outro, o tal imprevisível mestiço universal que o tempo se encarregará de produzir………

………. é isto que os meus personagens dizem no livro que estou a escrever e interrompi para poder estar agora aqui……… esse livro virá a esta à disposição de todos dentro de algum tempo, e só vou deter-me agora aqui num dos aspectos que enunciei : ouvir ainda esse “OUTRO” enquanto ele ainda existe……. ainda existe mesmo ?………..

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……existe ainda sim, em certas partes do mundo como aquela de onde estou a sair e me mobiliza de há décadas a esta parte a atenção total……… e se me empenho agora aqui em fazer campanha  para que esse “outro” seja ainda tido em conta e ouvido não é tanto porque entenda que devemos ir todos escutar atentamente o que os mais-velhos de lá poderão ter ainda para dizer e para nos ensinar…….. a minha experiência de antropólogo leva-me a encarar com a maior prudência o que os mais velhos de hoje poderão vir a dizer aos que os abordam para interrogá-los……… dizem exatamente aquilo que muito pragmaticamente entendem que lhes convém que os outros ouçam, como acontece seja com quem for em qualquer parte do mundo……… será antes imperativo, em meu entender, ter essas populações em conta porque elas ainda hoje, neste preciso momento, continuam a ser alvo de uma violentação, de uma lesão, que lhes é imposta pela expansão ocidental ainda em curso e acionada tanto por ocidentais estrangeiros como por ocidentalizados compatriotas seus…….

…….não estou aqui mandatado por ninguém para falar em nome seja de quem for……. falo por mim………. não defendo nenhuma causa, assumo uma questão que diz respeito à minha própria razão de existir………  mas não posso deixar de referir, quando sou chamado a pronunciar-me acerca de questões que se reportam ao lugar do OUTRO, de que forma me aflige, para não dizer de outra maneira, ver populações que eram assediadas antes por agentes da ocidentalização impondo-lhes assumir os sinais e as maneiras do modelo ocidental e do progresso tecnológico e que são assediadas hoje pelos mesmos agentes ou equivalentes que agora pretendem impor-lhes a preservação dos sinais e as maneiras dos seus modelos arcaicos e não-ocidentais porque isso passou a insinuar-se como o mais rentável tanto para uns como para os outros desde que se deixem integrar em menus de programas turísticos e se deixem representar como expressões de um exótico ecológico e redentor ao lado de outras atrações bizarras como manadas de zebras, de elefantes e de gazelas………….

….não me perguntem que soluções proponho para problemas desta ordem……..não sou nem político, nem profeta, nem militante seja do que for………  mas terão certamente o direito de perguntar-me aonde quero chegar se não tenho propostas para salvar o “OUTRO” e todavia ainda assim convido a que esse outro seja tido em consideração e ouvido embora também não proponha que vão lá ouvir o que os mais-velhos poderão ter para ensinar………. que tipo de ação ou de atitude me leva ainda assim a pretender reter-vos a atenção ?……..

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……o que eu proponho é bem simples e ao alcance de interessados e de profissionais susceptíveis de ser congregados à volta de questões desta natureza………….  não é ter um caminho a propor……. é antes ter algumas idéias para uma eventual hipótese de poder vir a ajudar a encontrar maneira de achar um caminho……. admitir uma possível perturbação, reconfiguração ou mesmo substituição prospectiva, pragmática e programática do paradigma cosmogónico, cognitivo, institucional e político ocidental / global / universal, recorrendo a outros quadros paradigmáticos…… não se trataria de introduzir qualquer espécie de remedeio, de compensação ou de arranjo nos terrenos do paradigma humanista, mas antes de tentar configurar, ou  reconfigurar, um novo paradigma………….. no âmbito desta proposta a hipótese apenas seria encarada a partir e através da identificação, da convocação e da possível integração de dados provenientes de outros quadros de concepção, cognição, representação e ação afins a géneses  africanas e outras…… não se trataria seguramente de tentar suster a mudança mas de convocar outros saberes, outras visões, outras maneiras, outras hipóteses de mudança para além da que é imposta pelo programa ocidental…….. nem se trataria de  visar a substituição de um paradigma por outro ou de propor um melhor que o outro ……… mas alvitrar apenas alguma ação que soubesse extrair do que se sabe, e de todos os meios e expressões, alguma maneira melhor de lidar com toda a ordem de impasses sem estar a criar sempre novos impasses civilizacionais, acrescentando novos impasses a toda a ordem deles…

…….voltando à proposta, pois: não será eventualmente  possível  encarar a hipótese de poder extrair de outros quadros paradigmáticos que não o do humanismo ocidental algo que venha ao encontro do próprio interesse global irreversivelmente marcado e conduzido pelo modelo que o ocidente impôs ao mundo inteiro e continua em expansão ?…………

………….. mas então se o meu programa não passa por ir muito voluntariosa, folclórica e militantemente ouvir o que os mais-velhos poderão ter para ensinar, passará por quê então ? …… poderá talvez passar muito ortodoxa e academicamente, e será esse o meu sucinto e singelo e discreto programa, por ir ver o que a própria expansão ocidental terá produzido como registo sobre o “outro”………. uma releitura, uma revisita, portanto, daquilo que existe escrito……… mas não uma releitura crítica clássica………… procurando antes tentar descortinar e extrair o que poderá estar por detrás dos documentos etnográficos que foram utilizados, se existirem, ou dos textos produzidos sem que os seus autores tivesses em conta a hipótese de poder existir qualquer outro paradigma susceptível de merecer alguma consideração……. uma releitura, portanto, que ensaiasse agora outra perspectiva, uma perspectiva, precisamente, que tivesse em conta outras maneiras de o homem ver a sua relação com o resto da criação, que conferisse, assim, uma importância e uma pertinência diferentes a paradigmas outros que não o paradigma humanista ocidental que se impôs, dominou, e impera a partir daí em exclusividade……….. que tivesse até em conta que esta seria, talvez, uma oportunidade inovadora garantida aos intelectuais ocidentalizados,  outros  e ‘outros’, saídos tanto do campo do ‘outro’ como do do outro, e chamados sempre, sem alternativa, a situar a sua afirmação e o seu desempenho nos terrenos e nas arenas do exercício dos saberes e dos poderes de matriz ocidental……… poderiam assim talvez  finalmente intervir de uma maneira que lhes evitasse ceder ao folclore de fantasias autenticistas ou renascentistas e a coloboracionismos étnico-turísticos e nos abrisse enfim uma via para reivindicar para nós mesmos, também, o direito à exigência……….. há muito tempo que me atrevo a dizer que a intelectualidade científica dominante só nos respeitará mesmo quando se vir obrigada a incorporar  na ciência global alguma coisa que saia de uma matriz  inequivocamente nossa…………

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…..o programa que eu então me atreveria a sugerir aqui, sem saber muito bem a quem propô-lo, seria o de encarar uma ação que partisse de imediato para uma releitura geral de tudo quanto está registado sobre o saber do Outro, sobre saberes Outros, à luz da hipótese de poder admitir a existência e a eventual pertinência de paradigmas outros para aferir a relação das pessoas com o resto da criação, sem deixar também, logo à partida, de ter igualmente em conta todas as ofensivas anti-humanistas que o próprio paradigma humanista terá gerado ao longo da sua própria história e o que estará, está de facto, entretanto neste momento a ser feito em relação ao mesmo objetivo ainda que formulado de outra maneira………

……..um programa, portanto, que viesse  ao encontro das preocupações, dos problemas, dos impasses do mundo atual mas que visasse muito para além das démarches salvacionistas e socorristas das militâncias que vemos em curso e afinal não conseguem pôr sistema nenhum, por mais lesivo que ele se tenha já revelado, em causa……. que visasse antes uma volta tão absoluta na maneira de olhar para o mundo que ela viesse a constituir um salto quântico, uma mutação, um clinamen capaz de inspirar um quadro de  relações do homem com o resto da criação e com o mundo em geral  muito diferentes daquelas que o programa humanista desenhou para o futuro do mundo, a ponto de lhe estar agora a perturbar o presente de uma maneira que assusta a todos………..  que reapontasse a práticas diferentes que até talvez acabassem por convir a todos, mesmo àqueles que só querem é tirar proveito do domínio de tudo………….  um programa, enfim, que quanto mais não fosse criasse  a possibilidade de autorizar que alguém pudesse ensaiar,  experimentar, tentar, ver o que poderá talvez esclarecer-se dentro do que é imediatamente possível averiguar sem fazer muito barulho nem gastar muito dinheiro…………… permitisse tão-só talvez, sei lá, colocar alguns estudiosos a rever ao menos tudo o que está fixado, recolhido, escrito sobre as culturas outras…… novas leitura que permitissem novas extrações a partir dos mesmos materiais……… não haverá nada desprezado antes mas a extrair agora do paradigma animista, por exemplo, conforme as novas visões, as novas questões e os novos interesses que se impõem neste momento ao mundo ?……… talvez assim os personagens do livro que ando escrevendo encontrassem então terreno propício para propor o seu herói tutelar, esse Nambalisita herói ecológico e da alma comum que é homem e herói fora da condição humanista e de uma genealogia divina que até agora só foi dizendo respeito aos homens de certas cores e de certa cultura e lhes foi conferindo autoridade e legitimidade para irem controlando e regulando tudo, a criação inteira, incluindo os homens de outras cores…….

….e talvez  eu viesse então finalmente a encontrar fundamentos para formular em definitivo aquilo que ando a visar e a prometer há muito : um manifesto neo-animista proposto ao mundo inteiro como uma das vias da tal volta paradigmática e pragmática capaz de conferir lugar e sentido a todas as existências, divinas, biológicas e minerais até………

Intervenção na Conferência da Gulbenkian a 27 /10/2008, Podemos viver sem o outro?, vários autores, Tinta da China/Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, republicado no BUALA

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