Black Mirror, Black Face
Gisela Casimiro
Sou uma pessoa
sensível. Tive, durante a maior parte da minha vida, um estômago de avestruz e
uma pele que nunca me deu trabalho excepto pela cor que tenho. Não sou muito
picuinhas com os produtos de beleza. A regra de ouro é hidratação completa, de
cima a baixo, todos os dias. Aquele antigo ditado português que diz: put
the cream, sabem? Sou discreta na minha sensibilidade, mesmo quando é a pele a
sofrer. Mas a verdade é que a minha pele, o meu rosto, raras vezes são tela
para maquilhagem, embora goste da dita e aprecie vê-la bem aplicada. Não tenho
quase nenhuma, pelo menos comparando com a maioria das mulheres (e alguns
homens), e guardo-a para ocasiões especiais; nunca faço uma make completa,
escolho sempre as coisas mais básicas, e só tive uma embalagem de base na vida.
Talvez por isso me recorde demasiado bem da primeira vez que fui maquilhada por
uma amiga, antes de uma saída à noite; depois, por uma conselheira de beleza
numa loja da especialidade (achei que não parecia eu em nenhuma das vezes), por
maquilhadoras profissionais, que também trabalham em teatro, antes de participar
num programa de televisão (adorei). Talvez seja como habituarmo-nos a ouvir a
nossa voz gravada, melhora com o tempo. Não impede que saiba quais são as
tendências, que conheça a linha de produtos de palete inclusiva de Rihanna, ou
assista aos populares vídeos da Vogue, em que podemos ver celebridades como
Pablo Vittar aplicar maquilhagem em dez ou quinze minutos (que nunca o são
realmente, com todo o fast forward e as coisas que a dita diz já ter
feito antes de começar a gravar).
O Carnaval passou. Este
ano não o celebrei, mas reflecti bastante sobre. O melhor foi ver as fotos e
vídeos dos filhos dos amigos, mascarados, e os filhos dos desconhecidos, nos
comboios, na rua, em todo o lado. O pior foi ver escolas, como no caso de Matosinhos,
em que professores e demais funcionários se mascararam de negros e, inclusive,
foram dadas indicações aos alunos para irem vestidos como tal. É o negro ainda
uma coisa, e coisa tão passível de ser objectificada e banalizada, que pode ser
descaracterizada assim tão gratuitamente? Como pode uma criança africana ou
afro descendente ir para a escola de negro, quando é negra o tempo todo e,
mesmo se calha esquecer-se por um momento, e a achar-se apenas humana, a
própria escola a recorda, limita, ostraciza?
Finalmente comprei uma
máscara de carvão activado, algo que há muito me suscitava curiosidade, por
este ingrediente ser agora usado em tudo e para tudo; confesso que, também, por
me lembrar o black face. Em frente ao espelho, apliquei a dita seguindo meticulosamente
as instruções da embalagem e, depois, removi-a, lentamente e sempre na mesma
direcção. Saiu quase inteira. Pousei aquele retrato dermatológico na bancada do
lavatório e pensei, eis a minha black face. A minha amiga Diana chama-lhe mask
face (ela entende muito de maquilhagem). Achei o termo interessante, bem melhor
que black face. Não conheço, de facto, nenhum negro, nem aqueles descritos como
tendo um tom de pele preto-azulado, cuja fisionomia seja sequer próxima da
daquele rosto inanimado que me olhava. Deitei-a fora e retive esta palavra:
máscara.
Ainda se crê, em pleno
2019, que ser negro é uma fantasia para usar nos três dias de Carnaval, ou no
Halloween. Pinta-se a cara porque dá menos trabalho do que pintar também as
mãos e o resto, afinal nem é preciso prestar-se a tamanha cerimónia, isto é uma
coisa temporária, o resultado fica à vista de todos, literalmente in your
face. Agora sou negra, agora já não sou. Obrigada, água micelar. Obrigada,
toalhita desmaquilhante. Se eu, por nunca usar maquilhagem, me esqueço dela
quando a tenho, da minha identidade nunca me dispo nem esqueço. Se, há uns
anos, desamiguei uma antiga colega do secundário por ter postado fotos, no seu
Facebook, em que ela e uma colega de trabalho se mascaravam de negras, com
caras pintadas de preto ou castanho escuro, perucas afro e nomes a quererem-se
tribais, exóticos ou impronunciáveis, para completar os figurinos, hoje já não
o faço. Outro dia, no espaço de minutos, vi uma foto de perfil de alguém
mascarado de índio, a qual lhe mereceu inúmeros elogios e, depois, a foto de
três pessoas, uma das quais conheço, vestidas de negras, não menos
caricaturadas e caricatas do que a polémica vestimenta berbere de Madonna há
uns meses numa cerimónia de prémios. Em sua defesa, a rainha da Pop disse (mas)
“I love my dress”. E ninguém pode acusar Madonna de racismo, afinal tem mais
filhos adoptivos (4, negros, do Malawi) do que biológicos (2).
Eu também sei que essas
pessoas, as mascaradas no meu feed, adoram negros, adoram índios, e até têm
amigos que são. Mas ofendem, insultam. Provavelmente mais por ignorância do que
por qualquer outro motivo. Teimosia, também. Como se a afronta, por não ser
intencional, tivesse de ser tolerada por quem é dela alvo. Poderia encontrar
uma falsa lógica nestes episódios que mais lembram a série Black Mirror,
por estas pessoas nunca terem convivido com membros da comunidade indígena e os
mesmos lhes parecerem uma qualquer criação romanesca. Mas qual a desculpa para
todas as outras etnias? As que andam por todo o lado? Ou não se repara nelas
excepto quando se tenta, e mal, imitar quem nos parece ser e se quer considerar
“todos iguais”? Os mesmos que continuamos a tratar de formas diferentes. Porque
se o nosso primo ou a nossa avó não são um disfarce, porque é que mais alguém
seria? E nós, somos? Ou vocês, que eu sendo negra já o sou, claramente.
Acredito que temos de continuar a educar-nos uns aos outros, a explicar de
forma mais ou menos directa as razões de índios e negros não serem fantasias de
Carnaval (existe, no youtube, um vídeo excelente de Fernanda Carlone, que
recomendo, por responder à pergunta “O que é o black face e qual é o mal?”, que
muitas pessoas ainda fazem). Acredito que temos de denunciar, reportar,
criticar. Acredito que aceitar a diferença é aceitar uma opinião diferente
também, ainda que seja sobre a nossa/vossa boa intenção.
Recentemente, a Gucci
retirou do mercado uma camisola de gola alta que subia até ao nariz, deixando
um buraco na boca, delineada como se por um grosso batom vermelho. A Burberry
achou engraçado criar uma linha de hoodies com nós de forca como colares. O
público não entendeu a piada. Katy Perry criou uma linha de sapatos com caras
africanas, negras e, arrisco dizer, albinas também, inspiradas talvez em peças
de arte do continente. A Prada tinha um porta-chaves também considerado
racista, a velha dicotomia macaco/negro. Ninguém viu o mal em nenhum destes
produtos até terem sido postos à venda, talvez por não haver pessoas negras em
posições suficientemente relevantes ou, de todo, nestas empresas, que se
revoltassem e demonstrassem a razão de serem ofensivos. O público, no entanto,
não perdoa, e a ameaça de boicote é real. O problema começa bem antes da
criação: começa na contratação de conselheiros e designers de outras etnias,
numa indústria ainda predominantemente branca, que possam interromper a sequer
criação de tais peças e inspirar uma criatividade histórica, social e
culturalmente consciente. Um outro problema é a compra e venda de marcas de
sucesso criadas por africanos, a brancos, que o fazem como forma de acabar com
a concorrência, no entanto aniquilando também marcas para todos em prol da
continuação da expansão de marcas apenas para alguns. A responsabilidade é de
todas as partes, pois o que afecta uma minoria afecta todas, e as minorias têm
de saber que um legado é mais importante do que um lucro imediato.
Daqui a uns dias faço
outra máscara. E quando é que eu posso trocar a minha pele por outra? Não que
eu quisesse. Seria mais fácil? Com certeza. Seria melhor? Não. O melhor de cada
um é o que cada um já é ou pode vir a ser. Eu não serei mais caucasiana do que
alguma vez terei olhos azuis (os sapatos de Katy Perry têm-nos, curiosamente). No
seu poema “A woman speaks”, Audre Lorde termina com “I am woman / and not white.”
Que é como quem diz, há outras cores para seres humanos, e há outras cores para
géneros. Há outras possibilidades para fantasias. Há, também, a necessidade de
estarmos em contacto com a realidade, pois ela dura bem mais do que uma
qualquer efeméride. Se o Carnaval é cultura e tradição, convém lembrar que
ser-se humano não o é menos. Algumas homenagens não são senão hipocrisias e o
perpetuar de histórias que são muito diferentes conforme quem as conta. No
próximo ano, se Carnavalar não ofenda. O tempo passado em frente ao espelho a
mascarar-se de alguém que nem existe talvez possa ser passado a olhar o outro e
a tentar conhecer, ouvir, estar lá para quem é, não duvidem, bem real. Há
coisas que não podemos nem devemos mudar. Mas façamos algo por aquelas que
estão nas nossas mãos, nos nossos rostos e, sobretudo, nas nossas vozes e
consciências. Porque há coisas que não podemos nem devemos aceitar.