António Lobo Antunes, As naus,
Publicações D. Quixote, 1988.
(Excertos)
"Nunca encalhei, no entanto,
em homens tão amargos como nessa época de dor em que os paquetes volviam ao
reyno repletos de gente desiludida e raivosa, com a bagagem de um pacotinho na
mão e uma acidez sem cura no peito, humilhados pelos antigos escravos e pela
prepotência emplumada dos antropófagos" (ANTUNES, 1988, p. 200).
O homem chamado Luís, Camões,
declara: "[...] palavra que imaginava uma enseada repleta de naus
aparelhadas que rescendiam a noz-moscada e a canela, e afinal encontrei apenas
uma noite de prédios esquecidos a treparem para um castelo dos Cárpatos
pendurado no topo, uma ruína com ameias em cuja hera dormiam gritos estagnados
de pavões" (ANTUNES, 1988, p. 92)
"Passando por uma placa que
designava o edifício incompleto e que dizia Jerónimos esbarrámos com a Torre ao
fundo, a meio do rio, cercada de petroleiros iraquianos, defendendo a pátria
das invasões castelhanas, e mais próximo, nas ondas frisadas da margem, a
aguardar os colonos, presa aos limos da água por raízes de ferro, com
almirantes de punhos de renda apoiados na amurada do convés e grumetes
encarrapitados nos mastros aparelhando as velas para o desamparo do mar que
cheirava a pesadelo e a gardênia, achámos à espera, entre barcos a remos e uma
agitação de canoas, a nau das descobertas" (ANTUNES, 1988, p. 10).
"Cabral viu a esposa
erguer-se da sua tábua de melhoramentos plásticos, idêntica às imagens das igrejas
de manhã, pulverizadas pelo sol rebentado como um fruto nos vitrais de
degolações de mártires da nave principal, de forma que se levantou,
estarrecido, de tornozelos embaraçados na espada, avançou um passo lento, como
se caminhasse sobre a água, para aquela aparição de beata laica preparada para
a visita hebdomadária do senhor Sepúlveda da moldura do piano, e perguntei a
medo, roçando com a ponta dos dedos a sua inacessível atmosfera de perfume e pó
de arroz, Tens por acaso doze contos e quinhentos que me emprestes?"
(ANTUNES, 1988, p. 173).