quinta-feira, 19 de outubro de 2017

As Naus, António Lobo Antunes



António Lobo Antunes, As naus, Publicações D. Quixote, 1988.





(Excertos)
 
"Nunca encalhei, no entanto, em homens tão amargos como nessa época de dor em que os paquetes volviam ao reyno repletos de gente desiludida e raivosa, com a bagagem de um pacotinho na mão e uma acidez sem cura no peito, humilhados pelos antigos escravos e pela prepotência emplumada dos antropófagos" (ANTUNES, 1988, p. 200).

O homem chamado Luís, Camões, declara: "[...] palavra que imaginava uma enseada repleta de naus aparelhadas que rescendiam a noz-moscada e a canela, e afinal encontrei apenas uma noite de prédios esquecidos a treparem para um castelo dos Cárpatos pendurado no topo, uma ruína com ameias em cuja hera dormiam gritos estagnados de pavões" (ANTUNES, 1988, p. 92)

"Passando por uma placa que designava o edifício incompleto e que dizia Jerónimos esbarrámos com a Torre ao fundo, a meio do rio, cercada de petroleiros iraquianos, defendendo a pátria das invasões castelhanas, e mais próximo, nas ondas frisadas da margem, a aguardar os colonos, presa aos limos da água por raízes de ferro, com almirantes de punhos de renda apoiados na amurada do convés e grumetes encarrapitados nos mastros aparelhando as velas para o desamparo do mar que cheirava a pesadelo e a gardênia, achámos à espera, entre barcos a remos e uma agitação de canoas, a nau das descobertas" (ANTUNES, 1988, p. 10).

"Cabral viu a esposa erguer-se da sua tábua de melhoramentos plásticos, idêntica às imagens das igrejas de manhã, pulverizadas pelo sol rebentado como um fruto nos vitrais de degolações de mártires da nave principal, de forma que se levantou, estarrecido, de tornozelos embaraçados na espada, avançou um passo lento, como se caminhasse sobre a água, para aquela aparição de beata laica preparada para a visita hebdomadária do senhor Sepúlveda da moldura do piano, e perguntei a medo, roçando com a ponta dos dedos a sua inacessível atmosfera de perfume e pó de arroz, Tens por acaso doze contos e quinhentos que me emprestes?" (ANTUNES, 1988, p. 173).
 


Sem comentários:

Enviar um comentário

Mulheres negras: moldando a teoria feminista, por bell hooks

  bell hooks Artigo completo:  (20) (PDF) bell hooks * Mulheres negras: moldando a teoria feminista Black women: shaping feminist theory | D...